A borboleta
negra
(ou Quando
borboletas, leões e lobos brincam de roda)
A borboleta negra deixou o jardim.
Deixou para trás lírios e lilases, petúnias e begônias, jasmins e afins. Deixou
a colorida fragrância do jardim. Deixou a claustrofóbica segurança do jardim.
Alçou vôos maiores: o perigo da liberdade.
As asas negras refletiam
irregularmente o prisma da luz solar. Púrpura de todos os tons irrompia.
Profusão de luz tênue. Luz reconfortante, sonolenta.
O bater de asas tercinado a valsava,
rodopiando ao final do compasso, repleto de repetições: o padrão da felicidade
de se ter asas e voar. Mas não o mais alto possível, cartesianamente, porém o
mais alto que se consegue, que o sonho completa à perfeição, à sinuosidade de
quimeras e dragões.
E a bela borboleta não era feliz.
Porque o sentido de felicidade não existia em seu estado. O que existia era o
vôo: o espetáculo da borboleta negra.
Eis que um leão surgiu. Nunca se
soube se refletia a luz do sol ou se ele era a própria luz que o sol nos dá
todo dia, que fertiliza nossas mulheres, filhas e netas. Sol que beija em lábios de fogo.
O leão era orgulhoso e bateu na
borboleta. Bateu uma, bateu duas, bateu três vezes. Bateu até se cansar. De
suas patas altivas caíam farelos e finos pós brilhantes. Pós musicais, pós
luminosos na noite que caía. O leão não sentiu pena. Porque a ele era permitido
esse direito. A ele todos os seres viventes obedeciam e prestaram juramento
acerca de chegada da escura noite eterna.
O leão se foi e com a Lua Grávida,
surgiu um lobo. Seu pêlo refletia a lâmina lunar. Uma suave brisa o acariciava
e beijava seus lábios. Os olhos amarelos do lobo eram tristonhos, pois vinham
de uma ferida há muito maculada, sangrando um vermelho turvo. Eram olhos de dó.
Com toda sua força, o lobo sorveu os farelos e o pó brilhante, negro e púrpura,
por vezes azul do mar noturno. Sorveu com vivacidade, com a juvenilidade da
primavera, que traz os brotos da colheita do mês
seguinte.
O focinho do lobo – que agora felpudo e
esvoaçante no cume do rochedo – encheu-se de luz. Pequenos pontilhos de
estrelas nuas, virgens de louras madeixas, colo macio, alvor marmóreo. O lobo
que uivava toda noite para a Lua Grávida, dessa vez não uivou. E hoje não
sabemos se a borboleta negra deixou de existir, como uma chama que se apaga, ou
se habita em sonhos matinais de relva fresca e noturna disputa de clãs, mas foi
assim que as estrelas ensinaram aos homens a eternidade.
Rodrigo Martins
Em 19/09/2012.