segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A borboleta negra ou Quando borboletas, leões e lobos brincam de roda

É o tipo de texto que vale mais pela linguagem que pelo enredo. Procurei pautar numa certa inocência de Lewis Carol, Peter Gabriel. Procurei utilizar imagens mentais como se num livro ilustrado.

A borboleta negra

(ou Quando borboletas, leões e lobos brincam de roda)

          A borboleta negra deixou o jardim. Deixou para trás lírios e lilases, petúnias e begônias, jasmins e afins. Deixou a colorida fragrância do jardim. Deixou a claustrofóbica segurança do jardim. Alçou vôos maiores: o perigo da liberdade.
          As asas negras refletiam irregularmente o prisma da luz solar. Púrpura de todos os tons irrompia. Profusão de luz tênue. Luz reconfortante, sonolenta.
          O bater de asas tercinado a valsava, rodopiando ao final do compasso, repleto de repetições: o padrão da felicidade de se ter asas e voar. Mas não o mais alto possível, cartesianamente, porém o mais alto que se consegue, que o sonho completa à perfeição, à sinuosidade de quimeras e dragões.
          E a bela borboleta não era feliz. Porque o sentido de felicidade não existia em seu estado. O que existia era o vôo: o espetáculo da borboleta negra.
          Eis que um leão surgiu. Nunca se soube se refletia a luz do sol ou se ele era a própria luz que o sol nos dá todo dia, que fertiliza nossas mulheres, filhas e netas. Sol que beija em lábios de fogo.
          O leão era orgulhoso e bateu na borboleta. Bateu uma, bateu duas, bateu três vezes. Bateu até se cansar. De suas patas altivas caíam farelos e finos pós brilhantes. Pós musicais, pós luminosos na noite que caía. O leão não sentiu pena. Porque a ele era permitido esse direito. A ele todos os seres viventes obedeciam e prestaram juramento acerca de chegada da escura noite eterna.
          O leão se foi e com a Lua Grávida, surgiu um lobo. Seu pêlo refletia a lâmina lunar. Uma suave brisa o acariciava e beijava seus lábios. Os olhos amarelos do lobo eram tristonhos, pois vinham de uma ferida há muito maculada, sangrando um vermelho turvo. Eram olhos de dó. Com toda sua força, o lobo sorveu os farelos e o pó brilhante, negro e púrpura, por vezes azul do mar noturno. Sorveu com vivacidade, com a juvenilidade da primavera, que traz os brotos da colheita do mês seguinte.
          O focinho do lobo – que agora felpudo e esvoaçante no cume do rochedo – encheu-se de luz. Pequenos pontilhos de estrelas nuas, virgens de louras madeixas, colo macio, alvor marmóreo. O lobo que uivava toda noite para a Lua Grávida, dessa vez não uivou. E hoje não sabemos se a borboleta negra deixou de existir, como uma chama que se apaga, ou se habita em sonhos matinais de relva fresca e noturna disputa de clãs, mas foi assim que as estrelas ensinaram aos homens a eternidade.

Rodrigo Martins

Em 19/09/2012.