domingo, 29 de janeiro de 2017

Juliette Society - crítica

Juliette Society - crítica

Terminei recentemente de ler Juliette Society, de Sasha Grey, já com a proposta de fazer uma crítica. Fiz algumas pesquisas sobre as críticas existentes e me deparei com materiais não aprofundados ou ácidos preconceitos, o que inclui comentários desagradáveis à sua pessoa. Aqui a proposta não é esta, entendo que mais a cosmovisão que a biografia do autor define sua obra. É inegável que há uma relação muito íntima entre a experiência anterior da autora em questão e a temática do romance.
Numa justa avaliação, é um bom romance, composto por uma escritora talentosa. Sasha lança mão de técnicas descritivas, sem soar maçante, imprime um tom de realidade que é a cara do american way of life, preza por um lirismo pessoal nas comparações de sensações e impressões de sua protagonista, que são o ponto alto do livro. Mas há um porém: a enxurrada de cenas de sexo! É um romance erótico, ok? Mas seria como ter potencial para projetar uma Ferrari Testarosa e sair de fábrica com um Fusquinha 58... A parte negativa é que é perceptível que ela tem potencial para ir além, mas não o faz, Juliette Society poderia ter sido melhor, mas não sei se por óbvias razões de marketing ou porque o objetivo é gravitar nessa esfera menor que é o romance erótico. Em suma, eu a vejo futuramente diminuindo o repetitivo e explorando suas melhores características.
Quanto à linguagem, Sasha guarda o melhor para os momentos exatos, onde não há exatamente uma explosão de riqueza poética, antes a sutileza que o leitor desatento deixa escapar. É impossível encontrar diferença no lirismo entre as passagens destacadas adiante, em diferentes momentos:

Chicotes de couro estalam em minhas costas, mordendo minha carne, golpe após golpe

e

um profundo vermelho carmim que lembra os brilhantes tons de outono das árvores de carvalho que contrastam contra o céu azul-prateado durante o início da noite, na hora em que chego ao parque

Aprofundando um pouco mais, há alguns elementos que merecem destaque. Vamos a eles: em primeiro lugar o convite de pacto com o leitor foi sensacional. A descrição das maldades do mundo do capital estão ali, nuas e cruas, expressas por quem passou pelo submundo e dele pode falar com autenticidade. Um ponto interessante é que Catherine, a protagonista, precisa ser católica justamente para imprimir mais contradição com os fetiches relacionados à religiosidade. Se fosse protestante, a relação com o paganismo grego, os cultos das bacantes e Priapo ficariam mais distantes.
A substância do romance é a exploração do corpo: feminino e masculino. Na maior parte as analogias são perfeitas. A segunda matéria é a descrição dos fetiches. Se não estão todos, há um bom número deles. E sem esse puritanismo tosco de julgar a moça, confundindo intencionalmente personagem e autor. Façamos este pacto? Já a terceira é a excessiva referência a filmes clássicos. Isso eu achei bem chato e desnecessário. Tudo bem que ela pesquisou, mas se continuar assim será um forte motivo para que eu nunca mais a leia.
E por falar em filmes, não há como não mencionar 8 mm, estrelado por Nicholas Cage. Juliette Society é a cara de 8 mm, sem copiá-lo, obviamente. Aquele clima repugnante e hediondo está presente na mesma proporção. E sem o caráter investigativo, até para não se tornar romance policial, no que eu fugiria como o diabo foge da cruz.
Ainda nas referências, há o desenvolvimento do mergulho introspectivo, que a é melhor qualidade de Tchekhov, e soa como a estória dentro da estória, de Alexandre Dumas. Me pergunto até agora como o caderno Verso & Prosa, de O Globo, passou por isso e não viu! Esta parte do romance produziu outra pérola, que vem na veia de Robert Howard, em Os filhos da noite: a personagem se lembra de uma carta lida na pré-adolescência, que remete à memória genética da qual o autor estadunidense nos fala.

ficou comigo, incubado profundamente em meu subconsciente como um parasita, onde montou acampamento e fez uma casa para si

Há ainda elementos de Lovecraft e Gaiman completamente perceptíveis no final do livro. A confusão de corpos amontoados, todos copulando entre si, numa massa informe, caótica, que não beira, mas é a mais completa representação do Absurdo. Em Lovecraft, praticamente tudo, principalmente os mitos de Cthulhu. Em Gaiman, o conto Apenas o fim do mundo novamente, em Fumaça e espelhos, no que a ideia da Juliette Society – a tal festinha milenar para gente bacana transar – é a mesma do conto de Gaiman, e também a de um filme com Tom Cruise e Nicole Kidman, De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. E para completo horror dos puritanos até Ruben Fonseca tem o seu “campeonato de conjunção carnal”, no conto O campeonato, de Feliz ano novo.
Como visto, as referências são variadas, dos “orgones” de Allan Moore, em seu Neonômicon, a contos infantis (o clichê de Chapeuzinho Vermelho e o nem tanto Alice no País das Maravilhas) a Crowley:

Foda quem você quiser, do jeito que quiser.
E esta é a lei

Uma intertextualidade de riqueza ímpar é a livre comunhão com elementos bíblicos, reservada ao final do romance. A protagonista é enforcada e passa pela experiência de quase morte. Para ela – personagem – o sexo é tão libertador que ela – autora – compara a sensação de morte com um retorno ao antigo Céu, onde não havia distinção entre as águas do céu e do mar:

Vejo um bando de estorninhos rasgando o céu como um cardume de peixes, fazendo uma pequena curva para seguir pela corrente

Negar um estilo bem trabalhado, riqueza poética e talento é negar o conhecimento da própria literatura. Há escorregões? Há, sem dúvidas. Na infeliz comparação de vender creme dental para quem não possui dentes, na bisonha referência ao estupro de Maria Schneider por Marlon Brandon. Mas no total, Juliette Society tem pontos positivos. Se você não tem medo de pirus e bocetas, mergulhe nesta obra, que toca o irreal com contornos muito realistas.

23/12/2016

Rodrigo Martins