segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Estilha de Cristal: crítica

A Estilha de Cristal – crítica

A crítica agora é sobre A Estilha de Cristal, um dos romances de Dungeons & Dragons. Pelo que me consta, não é dos mais conhecidos, porém é um livro que merece alguma crítica, visto que não encontrei nenhuma. Em primeiro lugar vamos conceituar o que é Dungeons & Dragons para entender a importância da crítica.
D&D é um sistema de RPG, um dos mais antigos e mais famosos (sim, ele é mais famoso que a White Wolf). É também um dos mais variados em termos de raças, geografia e planos! Sim, planos de existência. Apesar das regras serem simples, há um grande leque de opções para jogadores e mestres de narrativa. Talvez seja esse um dos fatores de sua enorme popularidade. Falando um pouco mais sobre D&D, as raças existentes são praticamente tudo o que a cultura humana já produziu em termos de folclore e um pouco mais, como criações da literatura por exemplo (os hobbits de Tolkien são os halfings de D&D). Os cenários também dão conta de tudo o que conhecemos e mais um pouco, como as ilhas fantásticas e míticas, subterrâneos de Julio Verne até os planos de existência da Alta Magia e sociedades secretas. Porém isso ainda não é tudo: eles vão um pouco além em termos de História para criar o conceito de Era. Sim, são os chamados reinos ou realms de D&D. Vou citar os três que conheço, porém se houver complementos a serem feitos, por favor.
Para quem pesquisa ou se interessa por literatura fantástica, fantasia medieval ou simplesmente fantasia, irá se deparar com a dicotomia C. S. Lewis x Tolkien. Enquanto o primeiro preza por elementos mais fantásticos, o segundo situa tudo num plano histórico e busca referências mitológicas e folclóricas. Usando Tolkien como referência, digamos que o realm Dragonlance se parece muito com o momento histórico da Terra Média tolkieniana durante a Guerra do Anel, enquanto o realm Forgotten Realms se situa num passado muito mais distante, onde a magia é mais poderosa, o mundo está repleto de objetos mágicos poderosíssimos e tudo é muito mais que demais. Falei que há um terceiro, não foi? Pois é, é o realm Ravenloft, que explora as nuances de terror, horror e possui um clima pesadelar. Historicamente, não faço a menor ideia de onde se situa, mas seguindo o raciocínio estabelecido anteriormente, podemos conceituar para além da Guerra do Anel e compará-la com a nossa Idade Média, aquela coisa de Transilvânia, o medo que os europeus sentiam dos turcos, condessa Bathory e ir caminhando nessa linha até as expedições inglesas no Egito.
Tá, mas e A Estilha de Cristal? Calma, ainda não.
Há dois títulos considerados mais importantes: As Crônicas de Dragonlance (mais comumente chamado pelo seu primeiro livro da trilogia: Dragões do Crepúsculo do Outono) e Knight of the Black Rose (ainda não traduzido, cujo título sugere Cavaleiro da Rosa Negra). O primeiro é o mais conhecido de fato e o primeiro a ser lançado, enquanto o segundo é tido como o melhor, do ponto de vista literário, com boas técnicas de narração e um estilo refinado. O primeiro pertence a Dragonlance, obviamente, já o segundo, a Ravenloft.
Qual o objetivo da D&D em lançar romances de fantasia medieval ambientado em seus próprios cenários se poderiam fazê-los por meio dos jogos propriamente ditos?
Bom, raramente você me verá rasgando seda para empresas ou empresários, mas os caras foram geniais. E não, não direi que a resposta para toda e qualquer pergunta é $$$. Creio que ele veio, certamente, mas acompanhado daquilo que nos interessa enquanto fãs, jogadores, leitores de literatura e amantes da fantasia, que é a qualidade do trabalho desenvolvido, seja ele um jogo ou um título literário. E essa me parece ser uma característica da D&D, que é se expandir para outras mídias literárias. E você pode torcer o nariz o quanto quiser, porque o que eles fazem é literatura sim, e das boas. O primeiro destino foi o desenho. Quem não se lembra do clássico Caverna do Dragão? Pode lacrimejar, todos nós sempre fazemos isso. Este talvez tenha sido o maior sucesso de D&D fora do sistema de RPG. Depois foi o game pra Mega Drive que se não me engano foi também chamado Dungeons & Dragons. Lembro-me também, pelos idos de 1997, 1998, ter jogado num fliperama de shopping um jogo muito parecido com as ambientações de D&D. Jogava com uma mulher loira (levei dias para perceber que era na verdade um elfo...), mas também havia um anão e um bárbaro, dentre outros personagens.
E, finalmente, eles se aventuraram no terreno da literatura propriamente dito. E retomando a indagação feita lá em cima: era uma chance de descrever os cenários contidos nos jogos, explorar as características de diversas raças, o uso de mapas, elucidar a compreensão das culturas, exemplificar as formas de magia, entre outros, como fornecer ideias aos narradores das aventuras rpgísticas. Para quem se lembra dos materiais que citei, é uma característica da D&D explorar seu próprio universo (ou seria multiverso?) em outras mídias.
Bom, até aí não há nenhuma novidade em se servir de metalinguagem. Para muitos ela é até ruim, porque o risco de se tornar repetitivo é gigantesco. Dizem que este foi o grande problema ocorrido com As Crônicas de Dragonlance. Eu me eximo de formular qualquer juízo de valor porque não li o título todo e a versão que tive em mãos era tão ruim que abandonei.

Agora sim podemos ir finalmente a A Estilha de Cristal, e, se você ainda não leu, há muito spoiler aqui!!! Pode pular para a estrelinha vermelha lá embaixo.
O romance pertence a Forgotten Realms e escrito por Bob Salvatore. Eu nunca tive os livros deste realm em mãos, mas logo ao começar a ler, senti que era exatamente como imaginava. O livro pulsa a magia, a narrativa pulsa a magia. Logo de cara o leitor se depara com um poema inicial – mais uma característica dos romances de D&D – na linha Tolkien. No prólogo há uma muito bem elaborada descrição do plano dos demônios, com as hierarquias e tal, a oposição com seres angélicos, e Salvatore gruda o leitor página a página, com seu estilo narrativo, sendo cruel onde precisa ser, carismático ou engraçado na devida proporção, penetrando na personalidade das personagens para apresentar suas “humanidades”.
O que é a estilha?
É um cristal mágico confeccionado por lichs no melhor estilo Silmarils, ou os próprios anéis de poder forjados por Celebrimbor e entregues três aos elfos. Ela é O artefato em disputa, porém não o único, seu poder advém da captura da luz solar e sua principal característica é criar torres idênticas para amplificação de seu potencial. O enredo se desenvolve em Dez-Burgos, uma região que contém dez burgos e três lagos, além de um vale ao norte e outras coisas mais que estão no mapa. O primeiro livro fecha com uma guerra de homens bárbaros contra os homens de Dez-Burgos e os anões. Os bárbaros perdem e no segundo livro, Bruenor, um anão, adota um menino bárbaro, ensinando-o o ofício de ferreiro. O mesmo anão confecciona uma martelo mágico, chamado Garra de Palas, que em verdade é o Mjolnir de Thor, porque ele vai, acerta a cabeça do adversário e retorna para as mãos de seu portador. Duas bonitas cenas são o ritual mágico no qual o anão desenvolve a arma, observada pelo elfo negro Drizzt, e a entrega da mesma ao não mais menino bárbaro. Akar Kessel, fazendo a linha aprendiz de mago manezão, e que encontra a estilha ainda no primeiro livro, decide tomar Dez-Burgos, com seu exército de monstros manipulados pelo poder do artefato. Para se somar à treta, outro manezão aprendiz de mago (um NPC lambão) liberta Errtu, o demônio que cobiça a estilha desde muito tempo, e parte sem demora para disputá-la. E como estamos falando de D&D, não poderia faltar justamente o dito cujo: um dragão branco cleptomaníaco (tô ligado na redundância, em D&D todos os dragões são cleptomaníacos). No terceiro livro, o bárbaro mergulha no mar de gelo, seguido do elfo negro, e ambos enfrentam Ingeloakastimizilian (pronuncia aí, rapá). Entre os tesouros de Ingel... Drizzt encontra uma espada de gelo, que obviamente combate seres de fogo. Porque é D&D, a bordoada estanca, e estanca para valer, e isso muito me lembrou Robert Howard e suas descrições de combate em massa. Salvatore foi muito feliz em tê-lo como referência. E o livro termina com a partida de quatro companheiros – há um hobbit entre eles – na busca pelas ruínas das cidades anãs, que é um ótimo gancho para um segundo volume. Mal espero para me debruçar sobre ele.
Na parte estilística e técnica, Salvatore coloca uma espécie de prólogo em cada livro, no qual o elfo negro Drizzt faz boas digressões filosóficas acerca de ética, influências culturais e de ordem social (não diria sociológicas). Fiz as seguintes observações as quais achei pertinentes:
As personagens Drizzt e Cássio são montadas em cima de Sun Tzu, de A arte da guerra. Isso porque são personagens bastante observadoras, que estudam minuciosamente os adversários, reservando a Cássio o combate em nível macro e a Drizzt o recurso de “cozinhar” o adversário e lançar mão de tocaias. Isso constitui um baita bizú para os mestres narradores. Outro bizú legal é o sistema de tranca de cofres do anão. Vale conferir.
Há um questionamento muito interessante por parte de Cattiebrie, uma jovem humana adotada pelo anão Bruenor, acerca da macheza sem limites do bárbaro Wulfgar. Ela basicamente pergunta se ter “piru” faz alguém ser melhor que outrem.
Na parte cômica, a construção de Sorrisão é esplêndida. Imagine um gigante de gelo com um nome desses.
E como nem tudo poderia ser flores há um deslize que não sei dizer se de Salvatore ou do tradutor, mas que é estranho balistas abrirem fogo, é. E muito. Na hora pensei em Silvio Santos falando “Mah oiê?”. Outra foi algo como “criaturas que jaziam mortas ou agonizantes”. Me pergunto como alguém pode repousar em agonia. o_O
Outra coisa que me deixou triste foi a sustentação da lógica burguesa dentro da fantasia medieval. Apesar de não ser tão aprofundada, como o é em Julliete Marrilier, por exemplo. É chato porque grande parte do público é composto por jovens que ainda estão em processo de sua formação intelectual e ideológica e se deparar com esse viés como o único possível é um tanto doloroso. O que me chamou a atenção foi a concepção de Cássio como o político que “rouba, mas faz”, o que é muito comum aqui no Brasil, onde nos deparamos com a corrupção em todas as instâncias de poder e setores da sociedade, inclusive na privada! Nem mesmo as grandes, pequenas, médias, minúsculas ou nano empresas estão isentas. Aliás, elas são as principais corruptoras! Porém não é este o assunto da crítica, contudo é impossível não falar, mesmo que brevemente, de algo que reflete muito bem (?) nossa realidade política, econômica e social.
Quanto aos volumes dois e três tenho algumas sugestões: no volume dois, os quatro aventureiros buscarão o Salão de Mitral dos povos anões embaixo da terra, no melhor estilo Jorney through the dark (Blind Guardian), ou a passagem por Moria em O Senhor dos Anéis, para no volume três, retornarem a Dez-Burgos e se depararem com alguma treta inventada pela própria Estilha de Cristal, porque no volume um ela desiste de Akar Kessel e não é mais mencionada. Lá no prólogo, Al Dimeneira, o ser angélico que bane o demônio Errtu do mundo material, abandona a estilha na neve. Aparentemente Drizzt cometera o mesmo erro, a menos que isso seja fundamental para a existência de um volume três. Aí Bob Salvatore está perdoadíssimo.

 

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(Se você chegou aqui, é um guerreiro, subiu no meu conceito!)
Ah, e por que eu falei exaustivamente sobre D&D lá no começo do texto? Porque achei simplesmente genial a concepção de arte dos caras. As mídias não são limitações para eles. Os caras encaram o desafio de promover a marca em outros mercados, mas com qualidade, o que rende bons frutos para o público. E não é mera metalinguagem, há um bom diálogo das outras mídias “filiais” com a matriz, que é o jogo de RPG. O que isso provoca na literatura? A tarefa de o autor ter de descrever o ambiente de jogo, algumas regras de funcionamento do sistema, discorrer acerca das características do jogo em si, como citei lá em cima, as culturas das sociedades, detalhes geográficos para o aprofundamento de ambientações, como os planos funcionam, as características das raças, como se inserem no contexto social. Isso acaba funcionando como um baita suplemento para o sistema de jogo, como os suplementos que a White Wolf fez para os livros de Changeling, embora a D&D os tenha feito muito antes e em forma de romances. E na literatura isso simplesmente modifica a forma de a obra ser entendida em sua totalidade. Não é mera literatura de consumo adolescente ou obra ficcional de fantasia baseada no folclore europeu. Elas constituem um capítulo a parte na crítica de literatura infanto-juvenil, justamente porque elas precisam fornecer material para os jogadores. Elas cumprem uma dupla função.
Como tenho acompanhado pouco D&D de uns anos para cá, não sei o que têm lançado, mas falando de outra mídia, vi em livrarias livros de World of Warcraft. Nunca joguei, conheço pouco, mas são games on line na linha RPG. O trabalho gráfico é lindo de morrer. Folheei algumas páginas, li umas linhas e achei que vem a ser um bom substituto do velho D&D e com a mesma proposta. Espero que sim e se valer a pena, mais lá na frente pode pintar aqui uma crítica. Agora estou lendo Juliette Society, da Sasha Grey, e se também valer o esforço vem crítica. De antemão, ela tem talento com as letras, vamos ver como se sai nos ¾ de livro que restam.

Em 15/12/2016

Rodrigo Martins