domingo, 26 de dezembro de 2010

A composição do eu-lírico em Luis Miguel

Ouvindo seguidas vezes algumas músicas de Luis Miguel encontrei um objeto interessante para ser tratado no âmbito da literatura. Encarando as letras de suas músicas – apenas as escritas por Manuel Alejandro, presentes no álbum Cómplices – como poemas é possível vislumbrar que o eu-lírico em Luis Miguel apresenta algumas peculiaridades que vão de encontro à imagem que o cantor passa: de homem romântico, sensual, fácil de encantar às mulheres, amante perfeito.
Porém o objeto em questão se dá quando esse mesmo eu-lírico perfeito é rejeitado. Simplesmente ele distorce a situação, impossibilitando o leitor (ouvinte) de compreendê-la num nível racional e direto. Como é o eu-lírico quem fala, ele dá a sua versão dos fatos. E como a imagem mercadológica do cantor está em primeiro plano – nestas músicas escritas para ele, descartando as regravações de boleros antigos – ela não deve ser ferida por este aspecto. Em suma: a imagem de Luis Miguel não pode ser rejeitada. A imagem que é vendida é a de que ele – como personagem – é tão perfeito que não pode ser desprezado. E, se a mulher faz isso, está completamente enganada ou, mais comumente, ele mesmo também já perdeu o interesse nesta mulher.
Vejamos alguns trechos da música Bravo, amor, bravo: Tú pensando en otra vida / Yo pensando en otro amor. Enquanto o eu-lírico pensa em um outro amor – e aí a carga semântica de amor dá valor à amor sincero, verdadeiro, respeitador etc. –, a mulher pensa, não em um amor mas sim, em outra vida – podendo contrapor em carros, luxo, dinheiro, glamour, qualquer coisa material. Ou seja, o eu-lírico se mantém sempre em busca do amor, não desiste dele. Se a mulher não quer mais, ele procura em outros braços. Ele tem real noção de que é “um cara bom”, afinal ele sabe que el amor en pleno vuelo / perdendo altura va poquito a poco, (em Amor de echo).
Na música Amor de hecho temos situação semelhante em seu refrão: Mejor mil veces amor de hecho / Que amor deshecho, reafirmando o mesmo valor de viver um amor verdadeiro, como ele, o amor, deve ser. Então também afirma que a materialidade simbólica do amor não tem sentido: Cuando el desamor nos llega / De que sirven alianzas? / (...) Cuando el desamor nos llega / Para que jaula de oro?
Um aspecto interessante que, acredito, é mais significativo na imagem que o cantor provoca no público está contida nos versos da música Bravo, amor, bravo, onde o eu-lírico simplesmente não pode sequer conceber a idéia de ter sido traído. Para tanto ele troca a 1ª pessoa pela 3ª pessoa, colocando-se muito mais como narrador que como personagem deste drama amoroso: Él descubre a otra persona / y ella a otro que no és él. Aqui também é importante salientar que o eu-lírico não se apresenta inocente, ele também buscou uma outra pessoa. Longe de se fazer de vítima, o desapontamento está nos dois, em como eles deixaram que esta situação acontecesse. Chega-se, até mesmo, a ironizá-la: Aplaudamos, / porque hiciemos / sin dudarlo / en esta farsa que acabamos / un buen papel / (...) los mil Oscar deste año / serian nuestros sin querer / (...) El guión era estupendo: / (...) Ya eran besos maquillados.
Mesmo quando o eu-lírico se coloca como um “vilão”, o cara mau das novelas de amor, ele ainda vende sua imagem de homem irresistível, sai na vantagem mesmo destruindo o que ele canta: o amor. A letra da música Se amaban conta a estória de um casal que se

Se amaban con la fuerza del amor primero
Con locura y timidez a un tiempo
Se amaban, se adoraban

Se amaban como niños, como dioses nuevos
Como ángeles azules se entregaban;
Se amaban, se adoraban


E foi separado pelo eu-lírico

Me interpuse en sus caminos
Suavemente como niebla
Como lobo ante su presa
Sutilmente la aceché

Desperté pasiones negras en el corazón de ella
Y sembré la mala hierba en el corazón de él
Devasté su cuerpo, me bebí su boca


Por pura perversidade:

Y ahora que prendí ya el fuego
Me pierdo como las olas
Y ahora que prendí ya el fuego
Me pierdo como las olas
Y se amaban, se amaban
Se adoraban


Rodrigo Garcez Martins

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Novelo




Este é um conto já um tanto antigo, de 2005. Os motivos pelos quais o escrevi prefiro ocultar. Fiz no calor do momento e hoje, apesar de adorá-lo, o que me inspirou não faz mais sentido. Mas de qualquer forma está aí um bom exemplo de uma boa resposta. À época fui elogiado por amigos e colegas, professores, enquanto outros desprezaram. Acredito que foi neste conto que minha ficção mudou de mitológica e fantasista medieval para algo mais sobrenatural urbano.

Assim, tomem cuidado com O Novelo..!

O Novelo

Esta estória os avós ouvem quando ainda são meninos. E tolos o bastante para não se perguntarem ‘como é possível?’. Ela é modificada para se adequar ao tempo em que é contada. Então a ouvem atentamente, imaginam. E sonham. Isso cria o Novelo. Antes que suas soberbas inteligências me perguntem, responderei às indagações que se formam em suas brilhantes mentes.
O Novelo simplesmente é. Sempre foi. E sempre será. Mesmo que nada mais haja, o Novelo estará lá. Para quando o Tudo surgir, ele co-habite em sua essência, seja simbiose e uno, perdão e pecado, glória e vergonha, beijo e tapa, escapismo e meta.
Mas na verdade vocês mesmos sabem que o Novelo não é nada disso. Sabem que ele está aí, em algum lugar de suas mentes, mas não podem achá-lo. É mais fácil ignorá-lo por toda a vida. Ele é mais que sonhos e pesadelos.
Ele é... o Novelo.

Joel era um homem arrogante. Professor de uma universidade bastante conceituada. Extremamente racional o objetivo, como se definia, em suas questões cotidianas. Seu divertimento era troçar das pessoas, de suas idéias, argumentos, atitudes. Nunca se importou em ofender, mal-dizer, tudo isso era para ele um jogo bem, e muito bem, jogado. Em suma, o mundo o incomodava. Porque Joel era grande demais para ele. Ele se sentia um gigante, o verdadeiro Godzilla, a desmembrar o íntimo das pessoas que entrassem em seu círculo de relacionamentos.
Certa vez, uma pequenina criança, um menino, estava sentado no capô de seu Corolla preto. Havia algo em suas mãos. A luz do sol de Copacabana ofuscava, mesmo de óculos escuros, os olhos de Joel.
Chegando próximo à criança, Joel percebeu que se tratava de um livro. A capa vermelha com contornos dourados fê-lo lembrar-se de sua infância. Mas era algo por demais apagado em sua mente. Porque para Joel a fantasia da infância era algo por demais abstrato para sua mente racional compreender. Joel odiava ursos cor-de-rosa, sapos falantes, coelhos que usam meias. Isso nos leva a crer que Joel tinha a alma de um porco presa num corpo humano.
‘Saia daí de cima, moleque’, disse Joel. O pequeno menino apenas olhou para ele. ‘Que é isso que está lendo?’. Arrancou de suas mãos o livro vermelho deixando soltar uma página. E ela fora levada pela brisa que leva ao mar para suas águas. A doce e frágil Alice era valsada pelas correntes de ar e afogada no mar, juntamente com o coelho branco.
‘Tio, a Alice tem medo do gato que desaparece. Eu também tenho’. Joel olhou a capa e deparou-se com o odioso nome de Carol, Lewis Carol. Folheou mais algumas páginas não acreditando em tamanha futilidade para tão pouca idade. E jogou o livro ao chão.
‘Moleque estúpido. Lê João Cabral de Melo Neto e aprende alguma coisa nessa tua vida ridícula’. Ao fazer isso, ainda não achando o bastante, acerta um safanão na testa do menino. Apenas um pequeno menino que brinca com o que os adultos racionais e inteligentes preferiram ignorar até o fim de suas existências, até o momento em que clamarão por Cristo Salvador. Por que não mais em nada acreditaram em suas vidas, na hora do retorno à Mãe-Terra clamam por sua providência?
E Joel se fora. E fora feliz em seu carro novo, acelerando fundo, fechando outros motoristas.
Ao chegar em casa, tarde da noite, ele vê um estranho pássaro negro no topo de seu telhado. O pássaro é grande e Joel pega um velho binóculo que havia em seu porta-luvas. Ele pensa se tratar de um urubu, mas qual não é sua surpresa quando se depara com um corvo negro.
Joel diz a si mesmo que isto não pode ser verdade. O corvo então agita suas asas. Joel não quer admitir, mas está com medo. Muito medo. Apavorado, esquece-se de trancar a porta do carro. ‘Que se dane. Não há maneira de ninguém vivo entrar aqui. Não existem corvos no Brasil. Isso é o cansaço. Preciso de um bom banho.’
E assim Joel fez. Tomou seu banho. Antes deu o costumeiro beijo na testa em sua esposa, jantou, vestiu seu pijama amarelo e dormiu.
Joel teve um sono pesado naquela noite. Em momento nenhum se debatera, mas seu espírito se agitara dentro do corpo.
Ele viu um homem de baixa estatura que trajava roupas cinzas caminhando por um longo caminho subterrâneo. Este homem portava uma máscara de oxigênio e uma bengala branca. Parecia usá-la como uma varinha, manejando-a entre os dedos. Ele tateava as paredes do corredor como se procurasse algo. Dado momento, percebeu o homem escavar a parede. Não sabia por que nem como ele estava lá. Apenas sabia que estava. E aquele lugar era de certa forma conhecido por Joel. Será que ele poderia realmente lembrar-se disto? Será que Joel já vira este estranho? Quem era aquele exótico andarilho das trevas a caçar tesouros numa velha mina abandonada? Que seriam tais tesouros?
Talvez nem mesmo Joel pudesse saber.
O homem, juntamente com seu cenário, sumiu. Joel sentiu; seu corpo ou sua alma, não saberia dizer; afundar numa camada de gel, ou um véu. Essas sensações eram novas para ele. Porque Joel não sonhava. Não sabia qual o sabor de uma nuvem de chuva, que as estrelas são bolas de luz fria e explodem ao serem tocadas, que a lua se torna cheia quando grávida do rei-sol.
Joel estava agora em um corredor da universidade em que lecionava. Lentamente ele subiu as rampas de acesso. Ouvia barulhos estranhos, como o de ventosas se desgrudando de algum lugar. Súbito, ele se depara com um inseto gigante. Ele era azul. Como um carrapato bêbado de sangue.
Joel desce as rampas correndo. Chegando de volta ao primeiro andar, vê uma cena horripilante: o mesmo homem de máscara conduzindo sua bizarra companhia de insetos gigantes. Joel dá um grito de agonia. Como em outras tantas vezes em que era surpreendido no meio da noite quando criança. O homem muda de direção e passa a perseguir Joel.
Ele estica sinistramente sua bengala derrubando Joel, que cai ao chão, para levantar-se e cair novamente. Repetidas vezes isto aconteceu. Joel sobe as rampas então. Ele se depara com o inseto que defrontara anteriormente, pois havia se esquecido dele. O inseto o agarra. Joel, paralisado de pavor, apenas se entrega. Tão facilmente se entrega. Mas o divertimento de uma caçada é a caçada em si e não captura da presa. O inseto prende Joel entre suas patas, as mandíbulas se abrem, uma gosma verde é ejetada de suas entranhas e acerta em cheio Joel. Assim como o cascudo que dera no pequeno menino na praia. A gosma queima seu rosto. Mas ele pode suportar. Seus bigodes e barba estão verdes. Joel dá um grito. E chama por sua mãe.
O papel simbólico da mãe permeia a existência humana desde o mais remoto tempo. Dizem até mesmo antes de o homem tornar-se o ‘homem que sabe’, como se o homem soubesse de alguma coisa. Afinal, homens que sabem não clamam por sua mãe. Eles a honram e não exploram seu ventre, sua fertilidade. O matriarcado permeou os primeiros cultos da humanidade. E mesmo em mentes racionais ainda há um pouco do culto à mãe, da mãe que protege, alimenta, afugenta o menino brigão que implica com seu franzino filho.
E foi esta memória perdida na mente de Joel que dissipou seu verdugo. Porque os sonhos são assim. Nos domínios de Oneiros não é o rei-pensamento seu lorde, juiz e captor, mas sim o Novelo. Ele é o Nada e o Tudo. Mesmo quando o Tudo vira Nada, o Novelo sempre está. Nos domínios do Rei-Sonho, somente o sonho É.
Todavia, isso não era o bastante para que Joel estivesse livre de seus algozes. Mesmo o inteligente Joel sabia que um truque não pode ser usado duas vezes. Ainda mais o velho truque do nada, o ‘não acredito’, o qual Joel sempre usara durante toda a sua vida.
Por isso ele continuou a correr, subindo as infindáveis rampas. Sabia que uma hora teria de chegar a alguma lugar. Sabia que tudo estava tão estranho demais e que as coisas ditas reais deveriam aparecer a qualquer momento. E ele se agarraria a elas de qualquer forma. Poderia haver alguém nos andares superiores, alguma coisa que o pudesse livrar daquela hediondez.
Joel desistiu de correr. Havia se cansado. Não era mais um jovem e sim senhor de idade avançada. Arfando, ele tem a mirabolante idéia de tomar o elevador. Sua mente soberba o auxiliara a descer enganando àquele tétrico ignoto ser.
O elevador demora e o terror na mente de Joel faz gelar seu coração. Suas mãos trêmulas mal conseguem acertar o botão tantas vezes já acionado. Ele ouve barulhos. O mesmo barulho de ventosas se desgrudando do chão. Ele leva uma das mãos à boca. Os passos ficam fortes. O homem da máscara de oxigênio aparece, rodando sua bengala branca a uma velocidade altíssima; mesmo os melhores produtores de efeitos especiais não poderiam fazer coisa semelhante; uma orquestra de insetos gigantescos o segue. Joel esmurra a porta do elevador. Súbito, ele aparece. Joel abre a porta. ‘E agora? Vá tomar no cu, seu filho da puta de máscara.’ Porém quando Joel olha, vê que não há elevador. Não há nada senão um grande fosso. E ele quase se precipitou. Até mesmo o homem pensou o mesmo.
O silêncio sepulcral deste momento fora irrompido por ventosas. Mais ventosas. Joel empurra o homem e corre a descer as rampas novamente. O homem pouco se importa. Joel se sente um rato fugindo todo o tempo preso num labirinto a espera do Minotauro. Ele chega ao andar abaixo e se dirige ao lado esquerdo do corredor, na tentativa de esconder-se numa das salas de aula.
Quando avista a primeira delas, Joel vê o homem saindo de lá. Um mudo grito de terror ele dá. O homem aponta sua bengala para Joel. Ele estranhamente parece olhar o íntimo de sua alma. Porque os olhos são as janelas da alma. ‘Ô, seu arrombado, você sabe quem eu sou, sabe?’ Joel vê a bengala tomar a forma de um revólver. Branco. O homem nada diz. Dá um tiro em sua mão esquerda. Joel chora. Antes ele vê o homem, com uma gestual como num passe de mágica, transmutar o cenário onde estavam: o chão é todo feito em xadrez, com grandes pedras brancas e negras; há pilares relembrando a arquitetura grega; há um altar com um trono atrás do homem; há espadas e armaduras encostadas nas paredes. O homem traça com sua bengala a testa de Joel e a marca com um heptagrama.
Joel olha para os lados. Todos eles. Vê diversos selos de Salomão espalhados fora do piso xadrez. Mas selos de Salomão não têm serventia para ele neste momento. Ele encontra uma espada, que a muito custo consegue tirar do apoio. O homem vem em sua direção, andando como um esgrimista. Logo Joel percebe o que ele quer. E parte com sua fúria para cima do homem, que se esquiva. Lugubremente o homem sempre evita os movimentos de Joel. Ele sabe que não pode vencer.
Joel pensa em correr. O homem parece ler seus pensamentos. Ou lia seus sonhos? Impossível dizer. O homem o ataca. Joel não se defende e solta sua espada. O homem dá severos tapas em sua face. Joel choraminga. Como uma pequena criança quando apanha injustamente. O homem o atira ao chão e o chuta em suas nádegas.
Joel levanta e corre. Não sabe aonde foram parar os insetos. Ele não se importa. Tenta correr em direção às rampas de acesso. Desta vez quer ir para baixo. Quer sair da universidade. Mas o homem voa às suas costas, derruba-o, joga o peso de seu corpo contra o corpo de Joel amortecendo a queda.
Num ímpeto de fúria, e coragem; algo raro por parte de Joel neste episódio; ele enfrenta o homem da máscara. ‘Qual é a tua, ô cara? Se esconde por trás desta máscara. Mostra a cara, meu irmão, tá com medo?’. Algo na mente de Joel lhe dá a impressão de que o homem se surpreendeu com tamanha racionalidade diante de uma situação tão extrema. O homem tira sua máscara e Joel o vê sacudindo os cabelos negros. Aos poucos os cabelos espalham-se para mostrar o rosto deste homem tão macabro. Ele é um jovem. Dezesseis, dezoito, vinte anos. Joel não poderia caber. Os véus nublaram sua mente. Mas o corpo transmutara-se num pássaro. Com penas negras. Por todo o corpo deste jovem homem. Mais uma vez Joel grita. Seu horror era tamanho que ele se atirou ao chão. E gritava como se houvesse perdido a sanidade. O homem, agora com corpo de pássaro, dá outros severos na tapas na face de Joel. Ele, cansado de tanto desespero, sofrimento, dor, angústia, suplica para que tudo isto termine.
O homem traz na palma da sua mão um símbolo onírico. Ele tenta esfregar na testa de Joel. Tomado de pavor, Joel afasta a mão do homem e, no mesmo instante em que projeta suas mãos contra o peito dele, promove o mesmo ato em seu quarto.
Joel acorda sobressaltado. Respira ofegante repetidas vezes. Abre os botões de seu pijama amarelo. Toma o café frio que está em cima do criado-mudo. ‘Maria, acorda Maria, eles voltaram’. ‘Eles quem, Joel?’ ‘Eles, os besouros azuis...’

Mesmo a partir deste dia a personalidade de Joel continuou a mesma. Ele era velho demais para mudar. Até mesmo alguns pontos de suas características foram reforçados, porque ele não poderia demonstrar traços de derrota. Mas ainda assim, quando a noite chegava, e o vento assobiava suas melodias lânguidas, as corujas emitiam seus grunhidos de medo, os morcegos quase o derrubavam. Joel sabia que estava na hora de enfrentar sua cama, seus medos, seus sonhos. Sabia que Ele estaria lá, esperando por ele, com sua máscara de oxigênio, com sua bengala branca, com sua trupe de insetos gigantes. Ansiosos por brincar novamente.

31/05/2005

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Carta para a Companhia Noel

Mês de dezembro adentro não poderia faltar a presença do espírito natalino. Ele vai de mansinho chegando em nossos corações, nossas atitudes, permeia o nosso ser. Só não chega ao nosso bolso, claro, mas isso aí é no conto anterior...
Logo, não poderia faltar aqui no Mundo da Penumbra um conto de Natal. Com um ótimo olhar para o lado capitalista desta festa religiosa, o escritor Thiago capta matizes e situações curiosas acerca das crenças no espírito natalino.

Boa leitura, boas compras e boas festas é o que o Mundo da Penumbra deseja a todos.

Carta para Companhia Noel

Carta para papai Noel,

Querido papai Noel, fui um garoto bonzinho, respeitei os meus pais, tirei notas boas e ajudei os meus amiguinhos. Ontem tive um sonho. Eu era um cientista, e tinha uma arma laser que destruía o mundo. Fiquei maravilhado com o sonho. Quando acordei contei ao meu papai. Ele riu e disse que não tinha condições de me dar uma arma nuclear. Mas disse que, como me comportei, o senhor poderia me presentear com uma no natal. Então, como fui bonzinho, eu gostaria de ganhar uma arma laser, mas que soltasse laser azul, mas se não tiver azul pode ser verde mesmo, não gostaria de vermelho, porque vermelho lembra sangre (sem ofensas a sua roupa) – é que eu enjôo quando vejo sangue.

Domingo 12/12/2010
Tom Richie

13 de dezembro de 2010, Segunda-feira
Pólo norte

O duende Ping lê a carta com um sorriso bobo na cara. Ling se aproxima e lê o papel por cima do ombro do amigo e cai na gargalhada. Os dois balançam a cabeça concordando.

Dia 15 de dezembro
Na casa de Tom
Quarta-feira

- Mamãe, não vejo a hora de chegar o natal e o papai Noel trazer o meu presente.
- E você pediu o quê, meu filho?
- A arma do meu sonho, mamãe.
A mãe sorriu zombeteira. Ela olhou para ele e depois voltou a bater a massa do bolo.
- Vou perguntar pro papai o que ele pediu para o papai Noel.
- Tudo bem querido, mas veja primeiro se o seu pai não está muito ocupado. Se ele estiver, espere e volte mais tarde.
- Tudo bem, mãe.
O garoto desembestou em uma corrida e seus pezinhos tropeçaram no tapete na entrada do escritório do pai. Ele caiu e ralou os joelhos. O pai levantou os olhos e viu o garoto assoprando o machucado.
- Isso que dá ficar correndo sem motivo. Já falei mil vezes para você se comportar como uma criança civilizada.
- Tudo bem, nem machucou.
- Ainda bem.
- Pai?
- O quê?
- O que você pediu para o papai Noel quando tinha a minha idade?
O pai pensou e respondeu:
- Uma bola.
- Uma bola?
- Uma bola!
- Que coisa chata.
- Pode ser...
- Prefiro a minha máquina de raio laser que pulveriza os meus adversários.
- Você não tem adversário, Tom.
- Mas quando tiver?
- Você irá pulverizar todos?
- Com certeza papai.
A conversa entre os dois durou mais de uma hora. E na hora do jantar Tom explicou para a mãe, enquanto comia um pedaço de bolo de chocolate, que a arma poderia salvar várias pessoas, que com a arma ele poderia eliminar todos os bandidos do mundo e ameaçaria a todos os donos de lojas de doce a dar doces de graças às crianças pobres. A mãe riu e o pai sorriu.

17 de dezembro de 2010, Sexta- feira

Na fábrica no pólo norte

Ling escrevia em um caderninho de anotações, enquanto Ping media com um compasso em uma folha grande.
- Não, não - dizia Ling - tem que ter mais raios gamas.
- Eu sei, mas temos que ver essa coisa da mira. Como uma coisa dessas não vai ter uma mira.
- Está bom, mas se concentra no núcleo.
- Ok, ok.
- Temos que correr, está chegando o Natal já.
- Ok, ok.

23 de dezembro de 2010, Quinta- feira

- Terminamos – pulou de alegria Ping, olhando para a máquina que construiu.
- É verdade, disse Ling, se afastando com uma chave de fenda na mão e secando a testa com a manga da casaca verde.
- Ling, Ping?
- É o velho, esconde, esconde - correu Ping para cobrir a máquina de 1 metro com um cobertor.
- Ah, vocês estão aí – o Papai Noel entrou com seu calção de banho branco e touca vermelha – estava procurando vocês.
- Você não sente frio só de calção e touca?
- Um pouco – meneou a cabeça o Noel, mas tenho que me preparar para o grande dia.
- O Natal é só daqui a dois dias – olhou-o com desdém Ping.
O rosto de Papai Noel enrubesceu e ele disfarçou.
- E o que é esse treco aí?
- Nada não – os dois pularam na frente da máquina que tinha o tamanho deles.
- É um presente que estamos construindo.
- Ah tá, e vocês acharam a carta do garoto Tom que sumiu?
- Não senhor – balançou a cabeça Ping.
- Bem, então vou lá, não fiquem até muito tarde fazendo esse treco aí, vocês vão ter que me ajudar na hora de entregar os presentes.
- Está ok.
Noel se afastou e os dois voltaram a admirar a obra prima por baixo da tolha, espiando para ver se ninguém ia vir atrapalhar suas alegrias.

24 de dezembro de 2010, Sexta-feira
Véspera de natal
Papai Noel arrumava a roupa para a grande entrega, enquanto os duendes corriam de um lado para o outro ajeitando a sacola mágica de Natal, colocando e etiquetando presentes.
- Ping, – cochichou Ling – o que você acha que o moleque vai achar?
- Espero que esse pirralho goste, deu um trabalhão danado fazer esse brinquedo.
Papai Noel subiu no trenó e as renas se entrelaçaram na rede em suas posições respectivas. Os dois duendes subiram na carroça e o com um estalar levantaram vôo.

25 de dezembro de 2010
Meia-noite de Sábado, Natal

A noite foi passando enquanto o velhinho entregou casa a casa, entrando pelas chaminés, para deixar o presente debaixo das árvores.
A casa de Tom era amarela, com um telhado escuro. As renas pousaram o trenó. Noel desceu e coçou a barba.
- Não me lembro deste aqui.
- Esse é o Tom, o da carta perdida – respondeu Ping.
- Então vocês encontraram? Onde estava... – ele não completou, olhou para o relógio. Já volto. Os pais do garoto acabaram de sair da sala para cozinha.
Noel pulou e entrou na chaminé. Lá embaixo, colocou o presente no pé da árvore. Mas a fita do embrulho agarrou na fivela de seu cinto preto e abriu o embrulho. Papai Noel tentou embrulhar novamente, mas a arma disparou um laser vermelho e pulverizou o sofá da sala. Noel arregalou os olhos surpreso. Largou tudo como estava e voltou para o telhado.
Os duendes gargalhavam. Eles ouviram um grito entusiasmado vindo de dentro da casa. Em seguida ouviram a voz infantil de Tom dizendo: - “Obrigado papai Noel”.
- O que houve?
- Você acabou de deixar uma arma pulverizadora na casa do guri.
- Como assim?
- Foi o que ele pediu na carta. E nós dois fizemos. – Ping riu.
Papai Noel leu a carta que Ling entregou a ele e seu rosto foi se contorcendo de cólera.
- Como vocês ousaram fazer uma coisa dessas?! – explodiu Noel com raiva; seu rosto ficando da cor do uniforme.
Os duendes abaixaram a cabeça.
- O garoto – Papai Noel esfregou a carta na cara deles – pediu bem claramente. Ele especificou que não queria a arma com raio vermelho. Ele passa mal. Eu não sei como vocês dois vão fazer, mas eu quero que os dois desçam lá e re-configurem a arma para a cor que o garoto pediu.
- Mas...
- Sem mas, ele se comportou o ano todo, ele disse que não queria vermelho, então não será vermelho. É com uma falha dessas que vocês destroem a Companhia, vocês querem me levar a falência?
Os duendes desceram a chaminé reclamando.
Tom brincava com sua arma do lado de uma poça de vômito, enquanto os pais atordoados olhavam para vários montes de pó no interior do cômodo.
- Não é que o velho tinha razão – cochichou Ling no ouvido de Ping.
- É mesmo, o moleque passou mal.
- Vocês aí, – a família se virou para os dois que saiam da fumaça como demônios – viemos fazer uns ajustes no brinquedo. Se liga na gente não, faz de conta que não estamos aqui.
- Vamos consertar e ir embora, e vocês nem vão lembrar que estivemos aqui. –os dois se entreolharam e riram.
Tom entregou o presente para os dois e eles tiraram as ferramentas dos bolsos.
Os pais do garoto ficaram olhando com cara de idiotas para os dois.
- Prontinho, – disse Ping entregando o brinquedo para o menino – nesse botão sai raio azul e neste verde.
Os olhos do menino brilharam e ele agradeceu.
Os duendes encabulados jogaram um pó nos olhos da família e voltaram para a chaminé.
- Moleque maneiro, né?
- É verdade, mas os pais dele não têm educação, nem pra oferecer um chocolate nesse fio que está fazendo.
- Pois é, adultos não têm jeito mesmo.
Eles olharam para o Noel, que de braços cruzados os encarava.
- Vocês viram? Não doeu nada.
- Pois é, foi mal.
- É esse tipo de coisa que destrói o mundo, rapazes.
- Eu sei – coçou a cabeça Ping – não vamos fazer de novo.
- Eu acho bom mesmo. Com o que vocês fizeram hoje, colocariam em risco a reputação das empresas Noel, que levei tantos séculos para erguer. Nós prezamos a qualidade dos nossos produtos e o bom atendimento aos nossos clientes. Não é pra tanto que hoje em dia as pessoas estejam começando a apensar que Papai Noel é japonês. Mas agora subam aí que vamos voltar a fazer as entregas.
As renas subiram no céu gelado e atravessaram o horizonte rumo ao além, para fazer as entregas natalinas restantes, paras as crianças dos povos que ainda acreditam na Companhia Noel.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

U.T.I.


Este conto foi bolado para parecer uma coisa bem diferente do que ele é. Mas como toda coisa que parece mas não é, o contrário também ocorre. Então também temos coisas que realmente são como estão. Porém como saber se o que é parece ou é mesmo? só lendo para saber.

U.T.I.

Atendi o telefone e concordei prontamente com tudo que era solicitação. Sim, posso sim. Estarei aí dentro de uma hora. Vesti minha melhor calça, passei às pressas uma camisa social. Me encharquei de perfume – já que a voz no telefone é feminina. Pus um cordão estilo latin lover e fui.
No caminho fui soltando o cabelo, um jeito bagunçado-sensual-casual. Soltei do ônibus uns pontos antes para ir andando naquele sol forte. Tinha em mente suar um pouco para a combinação com o perfume elevar-se no ar e demarcar meu território naquele colégio.
O portão já estava aberto, então entrei. As luzes estavam todas apagadas. Talvez houvesse faltado energia, quem sabe eles não pagaram as últimas contas. Mas não me importei, uma vez aqui dentro faria com que me pagassem.
Ao entrar no pátio, vi o porteiro. Ele estava dormindo com o boné caído no rosto. Deixei ele lá em comunhão consigo e segui. Sentei-me em uma das várias cadeiras que lá estavam. Resolvi esperar que viessem me atender. Estava tudo tão vazio e silencioso.
O tempo passou e nada. Peguei meu celular e liguei para o número que julguei ser da secretaria. Estava sem crédito. Droga. E agora? Guardei meus escrúpulos no bolso e liguei a cobrar. O telefone chamou insistentemente e ninguém atendeu. Pude ouvi-lo tocar e ninguém atendeu.
Segui o som da campainha e abri uma porta. Uma secretária loura estava debruçada sob sua bancada. Os longos fios de cabelos alisados esparramando-se pela bancada. Não pude deixar de rir por um momento, porém tive de me conter. Precisava logo fazer parte daquela “dormilança”. Por isso eles apagavam as luzes. Ambiente à meia luz é totalmente propício. À minha esquerda, uma secretária morena dormia profundamente, de boca aberta, com os braços bem soltos. Não a havia visto porque seu monitor encobria minha visão. Pensei que se tivesse um peixe comigo poria em sua boca. Dessa vez não consegui evitar o riso. Eles estavam disputando um jogo de morto. Aquele que não resistisse e saísse da posição seria o último a receber seu salário.
Depois de recobrar minha seriedade, segui para uma ante-sala à frente. Lá dentro uma mulher negra, trajando o mesmo uniforme das demais, estava caída com a mão presa na copiadora. Corri para ajudá-la. Quando a toquei percebi que sua mão estava tão dura. Dura e fria. Um hematoma roxo na mão inchada dificultava retirá-la dali. Pus as mãos em seu pescoço e senti sua pele totalmente sem calor. Logo retirei as mãos. Ela estava morta. Como alguém poderia morrer preso numa copiadora? Somente naquele lugar esquisito.
Voltei à sala anterior. Retirei o cabelo da loura de cima da bancada e constatei que sua pele estava tão pálida. Levantei sua cabeça, que estava com o pescoço um tanto endurecido, e vi que estava com olheiras horríveis. Olhos abertos. Fechei-os.
Os braços da sua colega de sala estavam numa posição esquisita, algo retorcidos. Tentei erguê-los e não consegui. Estavam completamente duros. Olhei dentro de sua boca. Um barulho provinha de lá. Uma barata, daquelas de cemitério, saiu de sua boca aberta. Com ela, um enorme odor de insetos. Saí da sala.
Ao avistar a sala dos professores, entrei para tentar encontrar alguém. Vivo. Cinco pessoas estavam debruçadas sobre a mesa. Como os diários estavam abertos, julguei que deveriam ser professores. Passei os dedos suados sobre as inscrições nos diários para ver se manchava-os. Não consegui. Deveriam estar ali há muito tempo. A um custo consegui retirar uma caneta das mãos de uma professora gorda. Um outro bem velho parecia exalar um odor de decomposição. E realmente estava se decompondo. Abri sua camisa e vi que vermes perfuraram seu peito e barriga. Soltei o corpo, que caiu com um barulho oco.
A cadeirona do diretor estava virada de costas. Era vermelha e alta, toda acolchoada, giratória. Girei a cadeira e vi um esqueleto segurando um copo de uísque. Vazio. Não é possível. O diretor morreu antes de todos? Olhei em sua mesa e vi uma placa que legitimava seu cargo. Era mesmo o diretor. Ao lado havia uma outra placa. El tigre. Será que ele predava os professores? E por que diabos ele estava “pelado”? Mexendo em suas gavetas encontrei charutos. Todos mofados. Horrivelmente podres. Saí da sala. Notei que o ponto eletrônico estava quebrado.
Já que estavam todos mortos resolvi subir aos demais andares para ver se encontrava algo diferente daquilo tudo. Já nas escadas, vi uma aluna caída. Sua boca estava praticamente azul. Lábios inchados. Estava abraçada a uma apostila. Cutuquei com os pés. O corpo ainda parecia “mole”. Abaixei-me. Toquei seu pescoço. Ela ainda estava com pouco calor corpóreo. Próximo a ela estava uma outra aluna com a camisa do uniforme amarrada na cintura. Esta não possuía nenhum material. Revistei seus bolsos e encontrei um batom e um espelho. Senti a temperatura de seu corpo. Gelada. Por pura cisma examinei seu pescoço e encontrei marcas de mordidas, mas não achei que fossem estas determinantes na sua causa mortis. Concluí algo que teorizava desde a universidade.
O corredor do primeiro andar estava repleto de adolescentes caídos. Os corpos pareciam incorruptos, porém como são jovens talvez demorem um pouco mais a se decompor. Andando de sala em sala vi que a tinta da caneta ainda estava preservada no quadro. Aquilo parecia um Egito antigo. Cheio de múmias. Todos preservados. Mas sem almas. Entrei no laboratório procurando pistas de alguma pane elétrica. Mas nada havia de errado. Tudo parecia dentro das normalidades. Não me arrisquei no de química. Como não tenho intimidade com tal, deixei como última opção desta questão mórbida.
No segundo andar, alguns alunos estavam caídos abraçados em posição de briga, uma espécie bizarra de bulling post mortem. O banheiro feminino estava repleto de alunas. Todas mortas com suas maquiagens nas mãos duras.
Pulei o terceiro e o quarto andares e fui para o quinto. Parecia um congresso de cadáveres no auditório. Vários corpos sem vida, cada um ocupando um assento. Todos muito bem vestidos, portando um crachá no pescoço. Havia coordenadores, orientadores, diretores de cursos, gerentes, gestores. Esses todos com seus corpos em estado avançado de decomposição. Grandes vermes saíam de seus corpos aos milhares. Olhando ao redor, havia uma turba de insetos, ratos mordiscando carne podre. E o fedor era nauseabundo. Tapei meu nariz e segui em frente. Era irônico ver aquela gente importante sendo devorada. Devorada por criaturas nojentas. Devorada pelo sistema. A natureza é cruel. Pior que o sucateamento das instituições. Pior que o menosprezo dos valores morais.
A palestrante estava no palco agarrada a um microfone sem fio. Não consegui retirá-lo de suas mãos. O cabelo alisado com formol estava grudado em seu rosto, mas mesmo que pudesse vê-lo acho que me seria impossível reconhecê-la. Os vermes desfiguravam-na a cada segundo. Perguntei em alto e bom tom quem dos cadáveres havia me ligado esta manhã. Ouvi um barulho vindo de fora do auditório. Corri até lá.
Segui o corredor. Dando a volta, encontrei uma sala entreaberta. Havia um garoto sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa. Livros abertos. Três. Toquei em seu ombro e senti que este estava bem quente. Falei qualquer coisa e o virei. Suas pálpebras estavam baixas. Dei dois tapas no rosto. Arregalei seus olhos. Estava morto também. Mas seu corpo estava quente. Parecia ter morrido há poucos minutos, talvez horas, mas já não estava ali em espírito. Apenas em corpo. Como todos. Reparei que era a biblioteca.
Retornei ao corredor e forcei uma porta trancada. Quebrei o vidro com o extintor e abri por dentro. Havia um esqueleto vestido de malandro. Todo de branco. Chapéu, sapatos, linho. Em cima de sua mesa, todo o tipo de vícios: cigarros importados, bebidas de alto teor alcoólico, baralhos e mais baralhos, lingeries, um lap top com fotos de menores de idade semi-nus, um misterioso punhado de pó branco que não ousei tocá-lo. Numa das Miquilinas estava o telefone de uma Unidade de Tratamento Intensivo. Não sabia de qual hospital, mas peguei o telefone e liguei. Não deixei que a atendente falasse. Pedi uma ambulância para aquele endereço e desliguei. Aquelas almas precisavam de qualquer tipo de tratamento. Saí daquele cemitério antes que o mesmo acontecesse comigo.

Em 21 de setembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010

Inccubus



Já há algum tempo que tenho vontade de escrever alguma prosa erótica. Porém não totalmente descabida como muitos supõem o gênero. Sim, claro, é preciso que se desperte o desejo, fale mais alto ao instinto, mas nunca foi interessante para mim ficar apenas nas descrições. Até porque se cairia no clichê. E destesto clichês. Meu objetivo sempre foi prender o leitor também - ou muito mais - pela estória que pela descrição. Antes que lembrem os eróticos de Neil Gaiman acredito sinceramente passar bem longe dele, porque desço nas camadas mais densas do sexo, seja ele como for. Não tenho vergonha de perder a classe como mestre Gaiman (risos).
Já tive outras tentativas no gênero mas elas se perderam como quem perde para duendes palhetas, óculos, broches. Com a grande diferença que estes se pode achar algum tempo depois. Estas tentativas estão perdidas para sempre.
O que segue abaixo é apenas o começo. Já tinha a estória na mente, mas precisava de um pano de fundo. Foi quando essa balbúrdia maldita no Rio de Janeiro salvou minhas idéias. Sim, usei esses atentados contra a cidade dentro deste conto.

Inccubus

Dois diabos conversavam em um manguezal, cuja localização ficava em uma reserva ambiental. Um era feito em fogo. Da metade de sua silhueta para cima, podia-se entrever uma figura humanóide. Já da metade para baixo as chamas refulgiam em profunda intensidade fazendo um cone apontando para baixo: o Inferno. O outro diabo era incrivelmente belo. Porém, por vezes, sua silhueta parecia transparente, como se perdesse materialidade. Quando não estava translúcido, uma radiante imagem resplandecia. Seu maxilar largo parecia moldado com as próprias mãos. Seus olhos foscos eram duas pequenas gemas negras reluzentes. Seu peito estava nu e não havia um só pêlo nele. Trajava apenas uma calça branca havaiana. Seus pés estavam descalços.
Os dois se cumprimentaram com a mão esquerda de forma que um tocasse a parte interna do antebraço do outro a apertar. Ao fazerem isso, um jacaré submergiu e, ao se deparar com a cena horripilante, afundou sob aquelas águas lodosas.
O efreeti, que não tocava o chão com seu cone, andou em redor do outro, olhando-o minuciosamente. Seus olhos faiscavam. Súbito acendeu uma chama com a mão esquerda.
- Apesar de noite faz-se necessário a presença da luz. – disse o efreeti.
- A luz penumbral, claro. – retificou o outro, que começou uma canção. Sua bela voz era aguda e cristalina, como um cristal reverberando em um corredor de pedras.
O efreeti traçou no chão um círculo de fogo. Pequeninas chamas que ele controlava com os dedos. O outro assoprava símbolos, que eram tocados pelo fogo do efreeti e assim assumiam uma tonalidade alaranjada. Estes símbolos rodopiaram no ar e, ao final da canção, caíram estando atados ao chão.
- Estamos aqui nesta audiência para dar início aos relatos de nossas atividades. – disse o efreeti.
- Deveremos esperar pelos outros? – perguntou seu companheiro.
- Não temos muito tempo. Ainda não finalizei meus trabalhos.
De cima de um grande jacaré vem um terceiro diabo. Suas vestes brancas contrastam com sua pele negra. Eles podem perceber de qual diabo se trata, pois seu corpo é envelhecido. Ele levanta o surrado chapéu de palha. Seus olhos sofridos transmitem melancolia.
-Tem aí um fogo pro véio cá inflá o cachimbo? – disse o velho diabo com sua voz fina.
O efreeti acendeu uma pequena labareda no indicador esquerdo. Com os olhos semicerrados disse:
- Como pretendes entrar agora que o círculo foi fechado?
- Assim. – disse o velho e sumiu de cima do jacaré para surgir dentro do círculo com os outros dois. – Bunichim cê que é novo por essas banda. – disse olhando para o outro, enquanto o efreeti acendia seu cachimbo.
- Sem mais, devemos dar início à nossa cerimônia. – falou o efreeti.
Ele parecia sugar o prana presente no ar, reacendendo as chamas dentro de si. Concentrou-se fechando os olhos. Abriu sua boca para puxar mais o ar. Mais pareceu inflar-se e crescer. Parou num instante. E cuspiu uma breve chama no ar em forma de símbolo cabalístico somente conhecido pelos iniciados.
- Como toda cerimônia infernal, os participantes devem trazer uma prova de êxito no trabalho que realizaram.
- Fetiche cê qué dizê. É craro que nóis troxemo os fetiche que nos prende ao cavalo.
- Não estou preso a fetiche nenhum, velho. – falou com imposição o efreeti.
- Ah tá sim sinhô. Nóis tudo tamo. Sem o fetiche nóis num tem pruquê fazê isso com as pessoa.
Impaciente, o efreeti empurrou o velho, que caiu sentado.
- Como condutor desta cerimônia exijo respeito e que minha liderança seja obedecida. Trouxeste uma prova do trabalho que tem feito, velho?
- Truxe. Tá qui ó. – e ele mostrou uma velha camisa preta desbotada com uma perfuração de bala. – Esse morreu numa imboscada. Dois branquinho de azul correro atrás dele por um lado. Fiz ele caí umas duas vez. Machuco a perna na segunda. Pelo otro lado, veio um camburão. Antis, em casa, fiz ele saí pra rua de ropa preta. Pruquê na rua num tinha ninhuma viva arma de preto, só ele. Quando o camburão cercô ele, soprei fumaça na cara dele. Ele pensô que eu tava sarvano ele, encobrino ele na fumaça. Quando dissipô, um rapazinho de azul meteu o fuzil no peito dele. Mando bala, he-he. Caiu no chão durim.
Deu uma cachimbada o velho. A fumaça mostrou uma savana. Com leões repousando sob o sol avermelhado.
- Tanto tempo longe e fizeste apenas isso? – indagou o efreeti. – Nem deveria ter vindo para a cerimônia. Não consigo compreender porque os Lordes Infernais incluíram o seu tipo nestas atividades.
- Cê num comprende muitas coisa, fio. – No que o outro tentou disfarçar um sorriso.
O efreeti retomou então a palavra. Ajeitou a gola de sua camisa. Como de costume, apanhou uma pedra no chão e a levou às mãos. Apertou com força. Uma fumaça saiu dentre os dedos. Ao abrir, uma pedra amarelada havia em sua palma. Ele a enterrou.
- Assim saberão onde nos encontraremos daqui a um ano e um dia. – Puxou de suas vestes um sapato mocassim. – Este trabalho foi um tanto quanto curioso. Um grupo de vermes humanos tentava assaltar vários motoristas numa rodovia intermunicipal. Eles a fecharam e pararam todos os motoristas. Quando um dos vermes veio até o primeiro motorista, pisei em seu pé, que estava pousado sob o acelerador do carro. Antes, porém, engatei a marcha ré. O carro disparou. Com palavras de ódio em sua mente, incitei o assaltante a atirar. A honra da quadrilha estava em questão diante daqueles homens passivos. Para encobrir o crime, disse-lhes que deviam incendiar os carros. Pareceria um atentado à ordem pública. Além do mais, o fogo liberta e purifica. O fogo absolve os crimes. Deixa os culpados impune.
- Bem que eu disconfiei que tava muito rebuliço na cidade. Que cê fez pra deixá tudo fumegano?
- Fui até os presídios onde estão confinados os homens neste país que mais se assemelham a nós. Incitei-os a um levante, uma verdadeira rebelião. Sem causa, sem compaixão. O único objetivo: tocar fogo em tudo. Fiz as articulações. De mim partiu o comando. Em cada parte da cidade está agora um veículo, um edifício, uma alma consumida em chamas. – riu. E sua risada era escabrosa. – E ainda há muito mais a queimar. Esta é uma das maiores metrópoles mundiais, onde dizem que Ele moldou a perfeição. Vou adorar destruí-la. Diferentemente de Roma não restará nada.
- Como imaginei que divia de tê o dedo docês, resorvi fazê das minha. Falei com cada coroné de batalhão, dano a ordi de largá o dedo na ispingarda. Mostrei as viela, os cafofo, cada bequinho onde se iscondi vagabundo. Tamém aparici pros generár. Inté armirante. Mandei botá tanque nas rua, atirá pra matá. Passá pur cima.
- Fiz com que um inocente morresse. – interrompeu o efreeti.
- E acha que não fiz a mema coisa? Quando as câmera da TV não pegô, mandei passá pur cima duma muié grávida o tanque, he-he. A arma desse feto vô levá comigo pru meu cumpadi nas catacumba.
- Não imaginava que fosse você. – o efreeti, sorrindo, cumprimentou-o como fazem os diabos. – Meus parabéns.
- E o menino bonito? Nada fez de bão?
E ele deu um passo a frente olhando para o velho. De um de seus bolsos retirou uma caneta. Deu-a ao velho.
- Cê matô arguém com isso?
- Cheire. – foi quando o efreeti tomou a caneta das mãos do velho e cheirou.
- É cheiro de fêmea. – falou o ele.
O belo diabo sorriu.
- Acaso isso é algum mal aos homens? – perguntou cheio de fúria o efreeti.
- Às mulheres deles. – o velho pegou de volta das mãos do efreeti antes que começasse a derreter.
- É cheiro de sinhá. – afirmou o velho.
- O seu trabalho tem alguma relação com o nosso?
- Talvez com as filhas deles.
E assoprou um ar vermelho vindo de sua boca. Formou-se um coração. Nele, colegiais dançavam em redor deste diabo.
- É impossível. – disse o efreeti. – Quero ouvir tua estória.
- Mesmo sendo quatro?
- A nossa foi resumida, ô rapagão. – encerrou o velho.

Continua...