sábado, 4 de dezembro de 2010

Inccubus



Já há algum tempo que tenho vontade de escrever alguma prosa erótica. Porém não totalmente descabida como muitos supõem o gênero. Sim, claro, é preciso que se desperte o desejo, fale mais alto ao instinto, mas nunca foi interessante para mim ficar apenas nas descrições. Até porque se cairia no clichê. E destesto clichês. Meu objetivo sempre foi prender o leitor também - ou muito mais - pela estória que pela descrição. Antes que lembrem os eróticos de Neil Gaiman acredito sinceramente passar bem longe dele, porque desço nas camadas mais densas do sexo, seja ele como for. Não tenho vergonha de perder a classe como mestre Gaiman (risos).
Já tive outras tentativas no gênero mas elas se perderam como quem perde para duendes palhetas, óculos, broches. Com a grande diferença que estes se pode achar algum tempo depois. Estas tentativas estão perdidas para sempre.
O que segue abaixo é apenas o começo. Já tinha a estória na mente, mas precisava de um pano de fundo. Foi quando essa balbúrdia maldita no Rio de Janeiro salvou minhas idéias. Sim, usei esses atentados contra a cidade dentro deste conto.

Inccubus

Dois diabos conversavam em um manguezal, cuja localização ficava em uma reserva ambiental. Um era feito em fogo. Da metade de sua silhueta para cima, podia-se entrever uma figura humanóide. Já da metade para baixo as chamas refulgiam em profunda intensidade fazendo um cone apontando para baixo: o Inferno. O outro diabo era incrivelmente belo. Porém, por vezes, sua silhueta parecia transparente, como se perdesse materialidade. Quando não estava translúcido, uma radiante imagem resplandecia. Seu maxilar largo parecia moldado com as próprias mãos. Seus olhos foscos eram duas pequenas gemas negras reluzentes. Seu peito estava nu e não havia um só pêlo nele. Trajava apenas uma calça branca havaiana. Seus pés estavam descalços.
Os dois se cumprimentaram com a mão esquerda de forma que um tocasse a parte interna do antebraço do outro a apertar. Ao fazerem isso, um jacaré submergiu e, ao se deparar com a cena horripilante, afundou sob aquelas águas lodosas.
O efreeti, que não tocava o chão com seu cone, andou em redor do outro, olhando-o minuciosamente. Seus olhos faiscavam. Súbito acendeu uma chama com a mão esquerda.
- Apesar de noite faz-se necessário a presença da luz. – disse o efreeti.
- A luz penumbral, claro. – retificou o outro, que começou uma canção. Sua bela voz era aguda e cristalina, como um cristal reverberando em um corredor de pedras.
O efreeti traçou no chão um círculo de fogo. Pequeninas chamas que ele controlava com os dedos. O outro assoprava símbolos, que eram tocados pelo fogo do efreeti e assim assumiam uma tonalidade alaranjada. Estes símbolos rodopiaram no ar e, ao final da canção, caíram estando atados ao chão.
- Estamos aqui nesta audiência para dar início aos relatos de nossas atividades. – disse o efreeti.
- Deveremos esperar pelos outros? – perguntou seu companheiro.
- Não temos muito tempo. Ainda não finalizei meus trabalhos.
De cima de um grande jacaré vem um terceiro diabo. Suas vestes brancas contrastam com sua pele negra. Eles podem perceber de qual diabo se trata, pois seu corpo é envelhecido. Ele levanta o surrado chapéu de palha. Seus olhos sofridos transmitem melancolia.
-Tem aí um fogo pro véio cá inflá o cachimbo? – disse o velho diabo com sua voz fina.
O efreeti acendeu uma pequena labareda no indicador esquerdo. Com os olhos semicerrados disse:
- Como pretendes entrar agora que o círculo foi fechado?
- Assim. – disse o velho e sumiu de cima do jacaré para surgir dentro do círculo com os outros dois. – Bunichim cê que é novo por essas banda. – disse olhando para o outro, enquanto o efreeti acendia seu cachimbo.
- Sem mais, devemos dar início à nossa cerimônia. – falou o efreeti.
Ele parecia sugar o prana presente no ar, reacendendo as chamas dentro de si. Concentrou-se fechando os olhos. Abriu sua boca para puxar mais o ar. Mais pareceu inflar-se e crescer. Parou num instante. E cuspiu uma breve chama no ar em forma de símbolo cabalístico somente conhecido pelos iniciados.
- Como toda cerimônia infernal, os participantes devem trazer uma prova de êxito no trabalho que realizaram.
- Fetiche cê qué dizê. É craro que nóis troxemo os fetiche que nos prende ao cavalo.
- Não estou preso a fetiche nenhum, velho. – falou com imposição o efreeti.
- Ah tá sim sinhô. Nóis tudo tamo. Sem o fetiche nóis num tem pruquê fazê isso com as pessoa.
Impaciente, o efreeti empurrou o velho, que caiu sentado.
- Como condutor desta cerimônia exijo respeito e que minha liderança seja obedecida. Trouxeste uma prova do trabalho que tem feito, velho?
- Truxe. Tá qui ó. – e ele mostrou uma velha camisa preta desbotada com uma perfuração de bala. – Esse morreu numa imboscada. Dois branquinho de azul correro atrás dele por um lado. Fiz ele caí umas duas vez. Machuco a perna na segunda. Pelo otro lado, veio um camburão. Antis, em casa, fiz ele saí pra rua de ropa preta. Pruquê na rua num tinha ninhuma viva arma de preto, só ele. Quando o camburão cercô ele, soprei fumaça na cara dele. Ele pensô que eu tava sarvano ele, encobrino ele na fumaça. Quando dissipô, um rapazinho de azul meteu o fuzil no peito dele. Mando bala, he-he. Caiu no chão durim.
Deu uma cachimbada o velho. A fumaça mostrou uma savana. Com leões repousando sob o sol avermelhado.
- Tanto tempo longe e fizeste apenas isso? – indagou o efreeti. – Nem deveria ter vindo para a cerimônia. Não consigo compreender porque os Lordes Infernais incluíram o seu tipo nestas atividades.
- Cê num comprende muitas coisa, fio. – No que o outro tentou disfarçar um sorriso.
O efreeti retomou então a palavra. Ajeitou a gola de sua camisa. Como de costume, apanhou uma pedra no chão e a levou às mãos. Apertou com força. Uma fumaça saiu dentre os dedos. Ao abrir, uma pedra amarelada havia em sua palma. Ele a enterrou.
- Assim saberão onde nos encontraremos daqui a um ano e um dia. – Puxou de suas vestes um sapato mocassim. – Este trabalho foi um tanto quanto curioso. Um grupo de vermes humanos tentava assaltar vários motoristas numa rodovia intermunicipal. Eles a fecharam e pararam todos os motoristas. Quando um dos vermes veio até o primeiro motorista, pisei em seu pé, que estava pousado sob o acelerador do carro. Antes, porém, engatei a marcha ré. O carro disparou. Com palavras de ódio em sua mente, incitei o assaltante a atirar. A honra da quadrilha estava em questão diante daqueles homens passivos. Para encobrir o crime, disse-lhes que deviam incendiar os carros. Pareceria um atentado à ordem pública. Além do mais, o fogo liberta e purifica. O fogo absolve os crimes. Deixa os culpados impune.
- Bem que eu disconfiei que tava muito rebuliço na cidade. Que cê fez pra deixá tudo fumegano?
- Fui até os presídios onde estão confinados os homens neste país que mais se assemelham a nós. Incitei-os a um levante, uma verdadeira rebelião. Sem causa, sem compaixão. O único objetivo: tocar fogo em tudo. Fiz as articulações. De mim partiu o comando. Em cada parte da cidade está agora um veículo, um edifício, uma alma consumida em chamas. – riu. E sua risada era escabrosa. – E ainda há muito mais a queimar. Esta é uma das maiores metrópoles mundiais, onde dizem que Ele moldou a perfeição. Vou adorar destruí-la. Diferentemente de Roma não restará nada.
- Como imaginei que divia de tê o dedo docês, resorvi fazê das minha. Falei com cada coroné de batalhão, dano a ordi de largá o dedo na ispingarda. Mostrei as viela, os cafofo, cada bequinho onde se iscondi vagabundo. Tamém aparici pros generár. Inté armirante. Mandei botá tanque nas rua, atirá pra matá. Passá pur cima.
- Fiz com que um inocente morresse. – interrompeu o efreeti.
- E acha que não fiz a mema coisa? Quando as câmera da TV não pegô, mandei passá pur cima duma muié grávida o tanque, he-he. A arma desse feto vô levá comigo pru meu cumpadi nas catacumba.
- Não imaginava que fosse você. – o efreeti, sorrindo, cumprimentou-o como fazem os diabos. – Meus parabéns.
- E o menino bonito? Nada fez de bão?
E ele deu um passo a frente olhando para o velho. De um de seus bolsos retirou uma caneta. Deu-a ao velho.
- Cê matô arguém com isso?
- Cheire. – foi quando o efreeti tomou a caneta das mãos do velho e cheirou.
- É cheiro de fêmea. – falou o ele.
O belo diabo sorriu.
- Acaso isso é algum mal aos homens? – perguntou cheio de fúria o efreeti.
- Às mulheres deles. – o velho pegou de volta das mãos do efreeti antes que começasse a derreter.
- É cheiro de sinhá. – afirmou o velho.
- O seu trabalho tem alguma relação com o nosso?
- Talvez com as filhas deles.
E assoprou um ar vermelho vindo de sua boca. Formou-se um coração. Nele, colegiais dançavam em redor deste diabo.
- É impossível. – disse o efreeti. – Quero ouvir tua estória.
- Mesmo sendo quatro?
- A nossa foi resumida, ô rapagão. – encerrou o velho.

Continua...

3 comentários:

  1. Há muitas coisas que não sabemos da vida, há coisas que não entendemos. Esse conto é uma delas. Não há nada mais que um punhado de vida, de essência, ao nosso redor e nem percebemos. Os personagens apresentados neste texto, são mais do que podemos ler e interpretar, se não prestarmos a devida atenção, entenderemos uma coisa que por mais que o nome sugira, não é a absoluta verdade. Talvez as entidades tenham soprado fumaça em nossos olhos, para nos enganar, nos ludibriar, mas o engano será nosso por não acreditar. Será que todos somos diabos disfarçados?

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  2. Pegando sua primeira frase, ela se encaixa totalmente com esta parte do conto aqui presente. Foi por isso que escolhi encarnar os 3 "diabos" em figuras folclóricas que em sua origem nada tem a ver com diabos, igreja, nem seus fiéis, mas que são tidos como. Pportanto estão presentes um efreeti (um gênio do fogo persa), um ganconer (um inccubus irlandês) e um preto velho (entidade do folclore nacional).
    Outra coisa que o conto também aborda é a questão da responsabilidade humana. As pessoas sempre põem a culpa em diabos ao invés de assumi-la. Logo, foi tão fácil encontrar qualquer culpado.

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  3. Obrigado por visitar meu blog!
    Adorei o seu, muito legal!
    Parabéns pelos textos.
    Abraço!

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