sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Novelo




Este é um conto já um tanto antigo, de 2005. Os motivos pelos quais o escrevi prefiro ocultar. Fiz no calor do momento e hoje, apesar de adorá-lo, o que me inspirou não faz mais sentido. Mas de qualquer forma está aí um bom exemplo de uma boa resposta. À época fui elogiado por amigos e colegas, professores, enquanto outros desprezaram. Acredito que foi neste conto que minha ficção mudou de mitológica e fantasista medieval para algo mais sobrenatural urbano.

Assim, tomem cuidado com O Novelo..!

O Novelo

Esta estória os avós ouvem quando ainda são meninos. E tolos o bastante para não se perguntarem ‘como é possível?’. Ela é modificada para se adequar ao tempo em que é contada. Então a ouvem atentamente, imaginam. E sonham. Isso cria o Novelo. Antes que suas soberbas inteligências me perguntem, responderei às indagações que se formam em suas brilhantes mentes.
O Novelo simplesmente é. Sempre foi. E sempre será. Mesmo que nada mais haja, o Novelo estará lá. Para quando o Tudo surgir, ele co-habite em sua essência, seja simbiose e uno, perdão e pecado, glória e vergonha, beijo e tapa, escapismo e meta.
Mas na verdade vocês mesmos sabem que o Novelo não é nada disso. Sabem que ele está aí, em algum lugar de suas mentes, mas não podem achá-lo. É mais fácil ignorá-lo por toda a vida. Ele é mais que sonhos e pesadelos.
Ele é... o Novelo.

Joel era um homem arrogante. Professor de uma universidade bastante conceituada. Extremamente racional o objetivo, como se definia, em suas questões cotidianas. Seu divertimento era troçar das pessoas, de suas idéias, argumentos, atitudes. Nunca se importou em ofender, mal-dizer, tudo isso era para ele um jogo bem, e muito bem, jogado. Em suma, o mundo o incomodava. Porque Joel era grande demais para ele. Ele se sentia um gigante, o verdadeiro Godzilla, a desmembrar o íntimo das pessoas que entrassem em seu círculo de relacionamentos.
Certa vez, uma pequenina criança, um menino, estava sentado no capô de seu Corolla preto. Havia algo em suas mãos. A luz do sol de Copacabana ofuscava, mesmo de óculos escuros, os olhos de Joel.
Chegando próximo à criança, Joel percebeu que se tratava de um livro. A capa vermelha com contornos dourados fê-lo lembrar-se de sua infância. Mas era algo por demais apagado em sua mente. Porque para Joel a fantasia da infância era algo por demais abstrato para sua mente racional compreender. Joel odiava ursos cor-de-rosa, sapos falantes, coelhos que usam meias. Isso nos leva a crer que Joel tinha a alma de um porco presa num corpo humano.
‘Saia daí de cima, moleque’, disse Joel. O pequeno menino apenas olhou para ele. ‘Que é isso que está lendo?’. Arrancou de suas mãos o livro vermelho deixando soltar uma página. E ela fora levada pela brisa que leva ao mar para suas águas. A doce e frágil Alice era valsada pelas correntes de ar e afogada no mar, juntamente com o coelho branco.
‘Tio, a Alice tem medo do gato que desaparece. Eu também tenho’. Joel olhou a capa e deparou-se com o odioso nome de Carol, Lewis Carol. Folheou mais algumas páginas não acreditando em tamanha futilidade para tão pouca idade. E jogou o livro ao chão.
‘Moleque estúpido. Lê João Cabral de Melo Neto e aprende alguma coisa nessa tua vida ridícula’. Ao fazer isso, ainda não achando o bastante, acerta um safanão na testa do menino. Apenas um pequeno menino que brinca com o que os adultos racionais e inteligentes preferiram ignorar até o fim de suas existências, até o momento em que clamarão por Cristo Salvador. Por que não mais em nada acreditaram em suas vidas, na hora do retorno à Mãe-Terra clamam por sua providência?
E Joel se fora. E fora feliz em seu carro novo, acelerando fundo, fechando outros motoristas.
Ao chegar em casa, tarde da noite, ele vê um estranho pássaro negro no topo de seu telhado. O pássaro é grande e Joel pega um velho binóculo que havia em seu porta-luvas. Ele pensa se tratar de um urubu, mas qual não é sua surpresa quando se depara com um corvo negro.
Joel diz a si mesmo que isto não pode ser verdade. O corvo então agita suas asas. Joel não quer admitir, mas está com medo. Muito medo. Apavorado, esquece-se de trancar a porta do carro. ‘Que se dane. Não há maneira de ninguém vivo entrar aqui. Não existem corvos no Brasil. Isso é o cansaço. Preciso de um bom banho.’
E assim Joel fez. Tomou seu banho. Antes deu o costumeiro beijo na testa em sua esposa, jantou, vestiu seu pijama amarelo e dormiu.
Joel teve um sono pesado naquela noite. Em momento nenhum se debatera, mas seu espírito se agitara dentro do corpo.
Ele viu um homem de baixa estatura que trajava roupas cinzas caminhando por um longo caminho subterrâneo. Este homem portava uma máscara de oxigênio e uma bengala branca. Parecia usá-la como uma varinha, manejando-a entre os dedos. Ele tateava as paredes do corredor como se procurasse algo. Dado momento, percebeu o homem escavar a parede. Não sabia por que nem como ele estava lá. Apenas sabia que estava. E aquele lugar era de certa forma conhecido por Joel. Será que ele poderia realmente lembrar-se disto? Será que Joel já vira este estranho? Quem era aquele exótico andarilho das trevas a caçar tesouros numa velha mina abandonada? Que seriam tais tesouros?
Talvez nem mesmo Joel pudesse saber.
O homem, juntamente com seu cenário, sumiu. Joel sentiu; seu corpo ou sua alma, não saberia dizer; afundar numa camada de gel, ou um véu. Essas sensações eram novas para ele. Porque Joel não sonhava. Não sabia qual o sabor de uma nuvem de chuva, que as estrelas são bolas de luz fria e explodem ao serem tocadas, que a lua se torna cheia quando grávida do rei-sol.
Joel estava agora em um corredor da universidade em que lecionava. Lentamente ele subiu as rampas de acesso. Ouvia barulhos estranhos, como o de ventosas se desgrudando de algum lugar. Súbito, ele se depara com um inseto gigante. Ele era azul. Como um carrapato bêbado de sangue.
Joel desce as rampas correndo. Chegando de volta ao primeiro andar, vê uma cena horripilante: o mesmo homem de máscara conduzindo sua bizarra companhia de insetos gigantes. Joel dá um grito de agonia. Como em outras tantas vezes em que era surpreendido no meio da noite quando criança. O homem muda de direção e passa a perseguir Joel.
Ele estica sinistramente sua bengala derrubando Joel, que cai ao chão, para levantar-se e cair novamente. Repetidas vezes isto aconteceu. Joel sobe as rampas então. Ele se depara com o inseto que defrontara anteriormente, pois havia se esquecido dele. O inseto o agarra. Joel, paralisado de pavor, apenas se entrega. Tão facilmente se entrega. Mas o divertimento de uma caçada é a caçada em si e não captura da presa. O inseto prende Joel entre suas patas, as mandíbulas se abrem, uma gosma verde é ejetada de suas entranhas e acerta em cheio Joel. Assim como o cascudo que dera no pequeno menino na praia. A gosma queima seu rosto. Mas ele pode suportar. Seus bigodes e barba estão verdes. Joel dá um grito. E chama por sua mãe.
O papel simbólico da mãe permeia a existência humana desde o mais remoto tempo. Dizem até mesmo antes de o homem tornar-se o ‘homem que sabe’, como se o homem soubesse de alguma coisa. Afinal, homens que sabem não clamam por sua mãe. Eles a honram e não exploram seu ventre, sua fertilidade. O matriarcado permeou os primeiros cultos da humanidade. E mesmo em mentes racionais ainda há um pouco do culto à mãe, da mãe que protege, alimenta, afugenta o menino brigão que implica com seu franzino filho.
E foi esta memória perdida na mente de Joel que dissipou seu verdugo. Porque os sonhos são assim. Nos domínios de Oneiros não é o rei-pensamento seu lorde, juiz e captor, mas sim o Novelo. Ele é o Nada e o Tudo. Mesmo quando o Tudo vira Nada, o Novelo sempre está. Nos domínios do Rei-Sonho, somente o sonho É.
Todavia, isso não era o bastante para que Joel estivesse livre de seus algozes. Mesmo o inteligente Joel sabia que um truque não pode ser usado duas vezes. Ainda mais o velho truque do nada, o ‘não acredito’, o qual Joel sempre usara durante toda a sua vida.
Por isso ele continuou a correr, subindo as infindáveis rampas. Sabia que uma hora teria de chegar a alguma lugar. Sabia que tudo estava tão estranho demais e que as coisas ditas reais deveriam aparecer a qualquer momento. E ele se agarraria a elas de qualquer forma. Poderia haver alguém nos andares superiores, alguma coisa que o pudesse livrar daquela hediondez.
Joel desistiu de correr. Havia se cansado. Não era mais um jovem e sim senhor de idade avançada. Arfando, ele tem a mirabolante idéia de tomar o elevador. Sua mente soberba o auxiliara a descer enganando àquele tétrico ignoto ser.
O elevador demora e o terror na mente de Joel faz gelar seu coração. Suas mãos trêmulas mal conseguem acertar o botão tantas vezes já acionado. Ele ouve barulhos. O mesmo barulho de ventosas se desgrudando do chão. Ele leva uma das mãos à boca. Os passos ficam fortes. O homem da máscara de oxigênio aparece, rodando sua bengala branca a uma velocidade altíssima; mesmo os melhores produtores de efeitos especiais não poderiam fazer coisa semelhante; uma orquestra de insetos gigantescos o segue. Joel esmurra a porta do elevador. Súbito, ele aparece. Joel abre a porta. ‘E agora? Vá tomar no cu, seu filho da puta de máscara.’ Porém quando Joel olha, vê que não há elevador. Não há nada senão um grande fosso. E ele quase se precipitou. Até mesmo o homem pensou o mesmo.
O silêncio sepulcral deste momento fora irrompido por ventosas. Mais ventosas. Joel empurra o homem e corre a descer as rampas novamente. O homem pouco se importa. Joel se sente um rato fugindo todo o tempo preso num labirinto a espera do Minotauro. Ele chega ao andar abaixo e se dirige ao lado esquerdo do corredor, na tentativa de esconder-se numa das salas de aula.
Quando avista a primeira delas, Joel vê o homem saindo de lá. Um mudo grito de terror ele dá. O homem aponta sua bengala para Joel. Ele estranhamente parece olhar o íntimo de sua alma. Porque os olhos são as janelas da alma. ‘Ô, seu arrombado, você sabe quem eu sou, sabe?’ Joel vê a bengala tomar a forma de um revólver. Branco. O homem nada diz. Dá um tiro em sua mão esquerda. Joel chora. Antes ele vê o homem, com uma gestual como num passe de mágica, transmutar o cenário onde estavam: o chão é todo feito em xadrez, com grandes pedras brancas e negras; há pilares relembrando a arquitetura grega; há um altar com um trono atrás do homem; há espadas e armaduras encostadas nas paredes. O homem traça com sua bengala a testa de Joel e a marca com um heptagrama.
Joel olha para os lados. Todos eles. Vê diversos selos de Salomão espalhados fora do piso xadrez. Mas selos de Salomão não têm serventia para ele neste momento. Ele encontra uma espada, que a muito custo consegue tirar do apoio. O homem vem em sua direção, andando como um esgrimista. Logo Joel percebe o que ele quer. E parte com sua fúria para cima do homem, que se esquiva. Lugubremente o homem sempre evita os movimentos de Joel. Ele sabe que não pode vencer.
Joel pensa em correr. O homem parece ler seus pensamentos. Ou lia seus sonhos? Impossível dizer. O homem o ataca. Joel não se defende e solta sua espada. O homem dá severos tapas em sua face. Joel choraminga. Como uma pequena criança quando apanha injustamente. O homem o atira ao chão e o chuta em suas nádegas.
Joel levanta e corre. Não sabe aonde foram parar os insetos. Ele não se importa. Tenta correr em direção às rampas de acesso. Desta vez quer ir para baixo. Quer sair da universidade. Mas o homem voa às suas costas, derruba-o, joga o peso de seu corpo contra o corpo de Joel amortecendo a queda.
Num ímpeto de fúria, e coragem; algo raro por parte de Joel neste episódio; ele enfrenta o homem da máscara. ‘Qual é a tua, ô cara? Se esconde por trás desta máscara. Mostra a cara, meu irmão, tá com medo?’. Algo na mente de Joel lhe dá a impressão de que o homem se surpreendeu com tamanha racionalidade diante de uma situação tão extrema. O homem tira sua máscara e Joel o vê sacudindo os cabelos negros. Aos poucos os cabelos espalham-se para mostrar o rosto deste homem tão macabro. Ele é um jovem. Dezesseis, dezoito, vinte anos. Joel não poderia caber. Os véus nublaram sua mente. Mas o corpo transmutara-se num pássaro. Com penas negras. Por todo o corpo deste jovem homem. Mais uma vez Joel grita. Seu horror era tamanho que ele se atirou ao chão. E gritava como se houvesse perdido a sanidade. O homem, agora com corpo de pássaro, dá outros severos na tapas na face de Joel. Ele, cansado de tanto desespero, sofrimento, dor, angústia, suplica para que tudo isto termine.
O homem traz na palma da sua mão um símbolo onírico. Ele tenta esfregar na testa de Joel. Tomado de pavor, Joel afasta a mão do homem e, no mesmo instante em que projeta suas mãos contra o peito dele, promove o mesmo ato em seu quarto.
Joel acorda sobressaltado. Respira ofegante repetidas vezes. Abre os botões de seu pijama amarelo. Toma o café frio que está em cima do criado-mudo. ‘Maria, acorda Maria, eles voltaram’. ‘Eles quem, Joel?’ ‘Eles, os besouros azuis...’

Mesmo a partir deste dia a personalidade de Joel continuou a mesma. Ele era velho demais para mudar. Até mesmo alguns pontos de suas características foram reforçados, porque ele não poderia demonstrar traços de derrota. Mas ainda assim, quando a noite chegava, e o vento assobiava suas melodias lânguidas, as corujas emitiam seus grunhidos de medo, os morcegos quase o derrubavam. Joel sabia que estava na hora de enfrentar sua cama, seus medos, seus sonhos. Sabia que Ele estaria lá, esperando por ele, com sua máscara de oxigênio, com sua bengala branca, com sua trupe de insetos gigantes. Ansiosos por brincar novamente.

31/05/2005

4 comentários:

  1. Esse é um conto que merece uma adpatação para quadrinhos.

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  2. É contigo mesmo. Querendo minha autorização ela já está permitida. Um amigo sugeriu que ele veio de lá... (risos)

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  3. Esse conto está numa página sobre goticismo que eu enviei. Agora não lembro o nome, mas os leitores de lá até gostaram. E num blog de um cara da globo do Nordeste. Elogiou bastante, mas foi sem minha autorização.

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