sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

U.T.I.


Este conto foi bolado para parecer uma coisa bem diferente do que ele é. Mas como toda coisa que parece mas não é, o contrário também ocorre. Então também temos coisas que realmente são como estão. Porém como saber se o que é parece ou é mesmo? só lendo para saber.

U.T.I.

Atendi o telefone e concordei prontamente com tudo que era solicitação. Sim, posso sim. Estarei aí dentro de uma hora. Vesti minha melhor calça, passei às pressas uma camisa social. Me encharquei de perfume – já que a voz no telefone é feminina. Pus um cordão estilo latin lover e fui.
No caminho fui soltando o cabelo, um jeito bagunçado-sensual-casual. Soltei do ônibus uns pontos antes para ir andando naquele sol forte. Tinha em mente suar um pouco para a combinação com o perfume elevar-se no ar e demarcar meu território naquele colégio.
O portão já estava aberto, então entrei. As luzes estavam todas apagadas. Talvez houvesse faltado energia, quem sabe eles não pagaram as últimas contas. Mas não me importei, uma vez aqui dentro faria com que me pagassem.
Ao entrar no pátio, vi o porteiro. Ele estava dormindo com o boné caído no rosto. Deixei ele lá em comunhão consigo e segui. Sentei-me em uma das várias cadeiras que lá estavam. Resolvi esperar que viessem me atender. Estava tudo tão vazio e silencioso.
O tempo passou e nada. Peguei meu celular e liguei para o número que julguei ser da secretaria. Estava sem crédito. Droga. E agora? Guardei meus escrúpulos no bolso e liguei a cobrar. O telefone chamou insistentemente e ninguém atendeu. Pude ouvi-lo tocar e ninguém atendeu.
Segui o som da campainha e abri uma porta. Uma secretária loura estava debruçada sob sua bancada. Os longos fios de cabelos alisados esparramando-se pela bancada. Não pude deixar de rir por um momento, porém tive de me conter. Precisava logo fazer parte daquela “dormilança”. Por isso eles apagavam as luzes. Ambiente à meia luz é totalmente propício. À minha esquerda, uma secretária morena dormia profundamente, de boca aberta, com os braços bem soltos. Não a havia visto porque seu monitor encobria minha visão. Pensei que se tivesse um peixe comigo poria em sua boca. Dessa vez não consegui evitar o riso. Eles estavam disputando um jogo de morto. Aquele que não resistisse e saísse da posição seria o último a receber seu salário.
Depois de recobrar minha seriedade, segui para uma ante-sala à frente. Lá dentro uma mulher negra, trajando o mesmo uniforme das demais, estava caída com a mão presa na copiadora. Corri para ajudá-la. Quando a toquei percebi que sua mão estava tão dura. Dura e fria. Um hematoma roxo na mão inchada dificultava retirá-la dali. Pus as mãos em seu pescoço e senti sua pele totalmente sem calor. Logo retirei as mãos. Ela estava morta. Como alguém poderia morrer preso numa copiadora? Somente naquele lugar esquisito.
Voltei à sala anterior. Retirei o cabelo da loura de cima da bancada e constatei que sua pele estava tão pálida. Levantei sua cabeça, que estava com o pescoço um tanto endurecido, e vi que estava com olheiras horríveis. Olhos abertos. Fechei-os.
Os braços da sua colega de sala estavam numa posição esquisita, algo retorcidos. Tentei erguê-los e não consegui. Estavam completamente duros. Olhei dentro de sua boca. Um barulho provinha de lá. Uma barata, daquelas de cemitério, saiu de sua boca aberta. Com ela, um enorme odor de insetos. Saí da sala.
Ao avistar a sala dos professores, entrei para tentar encontrar alguém. Vivo. Cinco pessoas estavam debruçadas sobre a mesa. Como os diários estavam abertos, julguei que deveriam ser professores. Passei os dedos suados sobre as inscrições nos diários para ver se manchava-os. Não consegui. Deveriam estar ali há muito tempo. A um custo consegui retirar uma caneta das mãos de uma professora gorda. Um outro bem velho parecia exalar um odor de decomposição. E realmente estava se decompondo. Abri sua camisa e vi que vermes perfuraram seu peito e barriga. Soltei o corpo, que caiu com um barulho oco.
A cadeirona do diretor estava virada de costas. Era vermelha e alta, toda acolchoada, giratória. Girei a cadeira e vi um esqueleto segurando um copo de uísque. Vazio. Não é possível. O diretor morreu antes de todos? Olhei em sua mesa e vi uma placa que legitimava seu cargo. Era mesmo o diretor. Ao lado havia uma outra placa. El tigre. Será que ele predava os professores? E por que diabos ele estava “pelado”? Mexendo em suas gavetas encontrei charutos. Todos mofados. Horrivelmente podres. Saí da sala. Notei que o ponto eletrônico estava quebrado.
Já que estavam todos mortos resolvi subir aos demais andares para ver se encontrava algo diferente daquilo tudo. Já nas escadas, vi uma aluna caída. Sua boca estava praticamente azul. Lábios inchados. Estava abraçada a uma apostila. Cutuquei com os pés. O corpo ainda parecia “mole”. Abaixei-me. Toquei seu pescoço. Ela ainda estava com pouco calor corpóreo. Próximo a ela estava uma outra aluna com a camisa do uniforme amarrada na cintura. Esta não possuía nenhum material. Revistei seus bolsos e encontrei um batom e um espelho. Senti a temperatura de seu corpo. Gelada. Por pura cisma examinei seu pescoço e encontrei marcas de mordidas, mas não achei que fossem estas determinantes na sua causa mortis. Concluí algo que teorizava desde a universidade.
O corredor do primeiro andar estava repleto de adolescentes caídos. Os corpos pareciam incorruptos, porém como são jovens talvez demorem um pouco mais a se decompor. Andando de sala em sala vi que a tinta da caneta ainda estava preservada no quadro. Aquilo parecia um Egito antigo. Cheio de múmias. Todos preservados. Mas sem almas. Entrei no laboratório procurando pistas de alguma pane elétrica. Mas nada havia de errado. Tudo parecia dentro das normalidades. Não me arrisquei no de química. Como não tenho intimidade com tal, deixei como última opção desta questão mórbida.
No segundo andar, alguns alunos estavam caídos abraçados em posição de briga, uma espécie bizarra de bulling post mortem. O banheiro feminino estava repleto de alunas. Todas mortas com suas maquiagens nas mãos duras.
Pulei o terceiro e o quarto andares e fui para o quinto. Parecia um congresso de cadáveres no auditório. Vários corpos sem vida, cada um ocupando um assento. Todos muito bem vestidos, portando um crachá no pescoço. Havia coordenadores, orientadores, diretores de cursos, gerentes, gestores. Esses todos com seus corpos em estado avançado de decomposição. Grandes vermes saíam de seus corpos aos milhares. Olhando ao redor, havia uma turba de insetos, ratos mordiscando carne podre. E o fedor era nauseabundo. Tapei meu nariz e segui em frente. Era irônico ver aquela gente importante sendo devorada. Devorada por criaturas nojentas. Devorada pelo sistema. A natureza é cruel. Pior que o sucateamento das instituições. Pior que o menosprezo dos valores morais.
A palestrante estava no palco agarrada a um microfone sem fio. Não consegui retirá-lo de suas mãos. O cabelo alisado com formol estava grudado em seu rosto, mas mesmo que pudesse vê-lo acho que me seria impossível reconhecê-la. Os vermes desfiguravam-na a cada segundo. Perguntei em alto e bom tom quem dos cadáveres havia me ligado esta manhã. Ouvi um barulho vindo de fora do auditório. Corri até lá.
Segui o corredor. Dando a volta, encontrei uma sala entreaberta. Havia um garoto sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa. Livros abertos. Três. Toquei em seu ombro e senti que este estava bem quente. Falei qualquer coisa e o virei. Suas pálpebras estavam baixas. Dei dois tapas no rosto. Arregalei seus olhos. Estava morto também. Mas seu corpo estava quente. Parecia ter morrido há poucos minutos, talvez horas, mas já não estava ali em espírito. Apenas em corpo. Como todos. Reparei que era a biblioteca.
Retornei ao corredor e forcei uma porta trancada. Quebrei o vidro com o extintor e abri por dentro. Havia um esqueleto vestido de malandro. Todo de branco. Chapéu, sapatos, linho. Em cima de sua mesa, todo o tipo de vícios: cigarros importados, bebidas de alto teor alcoólico, baralhos e mais baralhos, lingeries, um lap top com fotos de menores de idade semi-nus, um misterioso punhado de pó branco que não ousei tocá-lo. Numa das Miquilinas estava o telefone de uma Unidade de Tratamento Intensivo. Não sabia de qual hospital, mas peguei o telefone e liguei. Não deixei que a atendente falasse. Pedi uma ambulância para aquele endereço e desliguei. Aquelas almas precisavam de qualquer tipo de tratamento. Saí daquele cemitério antes que o mesmo acontecesse comigo.

Em 21 de setembro de 2010

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