segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito

Hoje deixo vocês com um microconto de um grande amigo, Maurício Panaro.  Ao lê-lo por primeira vez (o conto), pensei: “caramba, isso é a cara do Maurício. Que habilidade para “ficcionar” as próprias palavras!” Atendendo às características que o formato exige, estão lá impecavelmente a rapidez dos eventos, dos diálogos, a pouca profundidade nas personagens, sem porém deixar de preenchê-los de densidade. É isso, há uma densidade preenchida por poucas palavras, que expandem a ideia do meramente planificado na tela. Em suma, é um trabalho, não para se ler com pressa, mas com a sofisticação da degustação.

Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito

"Sabe, então é um infinito que está aí dentro." Disse Damião, sua voz educada soando cavernosa e arrastada, como duas lápides se esfregando.
"Achei que você tinha dito que há um espírito aqui." Corrigi.
"Tá mais pra uma... consciência dimensional - transcendente que se tornou levemente antropomórfica por lidar com nosso mundo disfarçada de humano." Ele explicou. "Ela já foi um lugar, uma cor e uma equação matemática. Aí veio pra cá e tentou ser humana nesse mundo. Agora ela é tipo um espírito mesmo. Mas um espírito infinito." Ele coçou o queixo calmamente. Damião era assim, sabido, mas honesto, por isso eu gostava de trabalhar com ele e o pessoal do apê. Dá pra confiar neles.
Segundo eles já fazia uma semana que eles tinham dado abrigo a uma entidade que precisava de ajuda. Logo depois essa entidade teve que ser engarrafada por Tia Fell, pois era capaz de consumir o universo se ocupasse o mesmo lugar que ele.
Girei a garrafa e inspecionei seu conteúdo. Eles estavam certos. 
"Exatamente o que vocês esperam que eu faça?" Perguntei, tentando manter a compostura de alguém que está segurando infinitas bombas nucleares na mão, todas presas por uma rolha dentro de um pedaço de vidro. 
"Então, a Fell trancou o bicho aí, mas o anjo nem chega perto disso. Andréia ficou tão abalada que foi dar um tempo fora, tá viajando não sei aonde e o Leandro... não dá pra confiar a ele esse tipo de coisa, você sabe." 
"Espera, vocês acham que eu posso cuidar disso? Ficar com isso?"
"Você pode?" Ele simplesmente perguntou.
Agem comigo com honestidade. Fiz o mesmo então.
"Acho que não; quer dizer, é uma infinitude, de qualquer maneira. Se escapar, vai no mínimo subverter centenas de mentes e se tornar uma Egrégora. No máximo vai virar a realidade toda do avesso e criar uma nova!" Tentei fazer ele entender que eu não tinha lugar pra guardar isso; o armário do quarto? Onde eu ia colocar algo com o potencial de destruir um universo?
"Eu entendo." Damião disse, do seu jeito particularmente calmo. "Mas a gente pensou também: 'Maurício conhece pessoas', então talvez você conheça alguém que possa ficar com isso, alguém de confiança... "
Enquanto ele explicava isso as engrenagens na minha cabeça já iam girando nas piores direções possíveis. Nossa, se isso cair em mãos erradas podem muito bem leiloar isso nos Planos, ou sugar essa energia de um universo inteiro, ou simplesmente quebrar a maldita garrafa...
"Você me ouviu?" Perguntou Damião, me despertando do devaneio terrível.
"Sim, ouvi. Não, eu não acho que eu conheça alguém, mas tenho outra solução. Posso levar essa garrafa e abrir além da Beira do Infinito. Do outro lado ela não vai ser problema, só vai se tornar um outro universo." Eu tentei manter a calma enquanto dizia aquilo. Queria que soasse provável, além de possível.
Silêncio por alguns segundos. Depois Damião respondeu:
"Vai ser uma puta caminhada!" 
"Eu gosto de caminhar." Respondi. 
Ajeitei a garrafa com cuidado na mochila, me despedi de Damião e comecei a andar em direção ao pôr do sol.

Extrato de diário (Referência; 124 - 201{?}; "Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito")

Maurício Panaro