segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Estilha de Cristal: crítica

A Estilha de Cristal – crítica

A crítica agora é sobre A Estilha de Cristal, um dos romances de Dungeons & Dragons. Pelo que me consta, não é dos mais conhecidos, porém é um livro que merece alguma crítica, visto que não encontrei nenhuma. Em primeiro lugar vamos conceituar o que é Dungeons & Dragons para entender a importância da crítica.
D&D é um sistema de RPG, um dos mais antigos e mais famosos (sim, ele é mais famoso que a White Wolf). É também um dos mais variados em termos de raças, geografia e planos! Sim, planos de existência. Apesar das regras serem simples, há um grande leque de opções para jogadores e mestres de narrativa. Talvez seja esse um dos fatores de sua enorme popularidade. Falando um pouco mais sobre D&D, as raças existentes são praticamente tudo o que a cultura humana já produziu em termos de folclore e um pouco mais, como criações da literatura por exemplo (os hobbits de Tolkien são os halfings de D&D). Os cenários também dão conta de tudo o que conhecemos e mais um pouco, como as ilhas fantásticas e míticas, subterrâneos de Julio Verne até os planos de existência da Alta Magia e sociedades secretas. Porém isso ainda não é tudo: eles vão um pouco além em termos de História para criar o conceito de Era. Sim, são os chamados reinos ou realms de D&D. Vou citar os três que conheço, porém se houver complementos a serem feitos, por favor.
Para quem pesquisa ou se interessa por literatura fantástica, fantasia medieval ou simplesmente fantasia, irá se deparar com a dicotomia C. S. Lewis x Tolkien. Enquanto o primeiro preza por elementos mais fantásticos, o segundo situa tudo num plano histórico e busca referências mitológicas e folclóricas. Usando Tolkien como referência, digamos que o realm Dragonlance se parece muito com o momento histórico da Terra Média tolkieniana durante a Guerra do Anel, enquanto o realm Forgotten Realms se situa num passado muito mais distante, onde a magia é mais poderosa, o mundo está repleto de objetos mágicos poderosíssimos e tudo é muito mais que demais. Falei que há um terceiro, não foi? Pois é, é o realm Ravenloft, que explora as nuances de terror, horror e possui um clima pesadelar. Historicamente, não faço a menor ideia de onde se situa, mas seguindo o raciocínio estabelecido anteriormente, podemos conceituar para além da Guerra do Anel e compará-la com a nossa Idade Média, aquela coisa de Transilvânia, o medo que os europeus sentiam dos turcos, condessa Bathory e ir caminhando nessa linha até as expedições inglesas no Egito.
Tá, mas e A Estilha de Cristal? Calma, ainda não.
Há dois títulos considerados mais importantes: As Crônicas de Dragonlance (mais comumente chamado pelo seu primeiro livro da trilogia: Dragões do Crepúsculo do Outono) e Knight of the Black Rose (ainda não traduzido, cujo título sugere Cavaleiro da Rosa Negra). O primeiro é o mais conhecido de fato e o primeiro a ser lançado, enquanto o segundo é tido como o melhor, do ponto de vista literário, com boas técnicas de narração e um estilo refinado. O primeiro pertence a Dragonlance, obviamente, já o segundo, a Ravenloft.
Qual o objetivo da D&D em lançar romances de fantasia medieval ambientado em seus próprios cenários se poderiam fazê-los por meio dos jogos propriamente ditos?
Bom, raramente você me verá rasgando seda para empresas ou empresários, mas os caras foram geniais. E não, não direi que a resposta para toda e qualquer pergunta é $$$. Creio que ele veio, certamente, mas acompanhado daquilo que nos interessa enquanto fãs, jogadores, leitores de literatura e amantes da fantasia, que é a qualidade do trabalho desenvolvido, seja ele um jogo ou um título literário. E essa me parece ser uma característica da D&D, que é se expandir para outras mídias literárias. E você pode torcer o nariz o quanto quiser, porque o que eles fazem é literatura sim, e das boas. O primeiro destino foi o desenho. Quem não se lembra do clássico Caverna do Dragão? Pode lacrimejar, todos nós sempre fazemos isso. Este talvez tenha sido o maior sucesso de D&D fora do sistema de RPG. Depois foi o game pra Mega Drive que se não me engano foi também chamado Dungeons & Dragons. Lembro-me também, pelos idos de 1997, 1998, ter jogado num fliperama de shopping um jogo muito parecido com as ambientações de D&D. Jogava com uma mulher loira (levei dias para perceber que era na verdade um elfo...), mas também havia um anão e um bárbaro, dentre outros personagens.
E, finalmente, eles se aventuraram no terreno da literatura propriamente dito. E retomando a indagação feita lá em cima: era uma chance de descrever os cenários contidos nos jogos, explorar as características de diversas raças, o uso de mapas, elucidar a compreensão das culturas, exemplificar as formas de magia, entre outros, como fornecer ideias aos narradores das aventuras rpgísticas. Para quem se lembra dos materiais que citei, é uma característica da D&D explorar seu próprio universo (ou seria multiverso?) em outras mídias.
Bom, até aí não há nenhuma novidade em se servir de metalinguagem. Para muitos ela é até ruim, porque o risco de se tornar repetitivo é gigantesco. Dizem que este foi o grande problema ocorrido com As Crônicas de Dragonlance. Eu me eximo de formular qualquer juízo de valor porque não li o título todo e a versão que tive em mãos era tão ruim que abandonei.

Agora sim podemos ir finalmente a A Estilha de Cristal, e, se você ainda não leu, há muito spoiler aqui!!! Pode pular para a estrelinha vermelha lá embaixo.
O romance pertence a Forgotten Realms e escrito por Bob Salvatore. Eu nunca tive os livros deste realm em mãos, mas logo ao começar a ler, senti que era exatamente como imaginava. O livro pulsa a magia, a narrativa pulsa a magia. Logo de cara o leitor se depara com um poema inicial – mais uma característica dos romances de D&D – na linha Tolkien. No prólogo há uma muito bem elaborada descrição do plano dos demônios, com as hierarquias e tal, a oposição com seres angélicos, e Salvatore gruda o leitor página a página, com seu estilo narrativo, sendo cruel onde precisa ser, carismático ou engraçado na devida proporção, penetrando na personalidade das personagens para apresentar suas “humanidades”.
O que é a estilha?
É um cristal mágico confeccionado por lichs no melhor estilo Silmarils, ou os próprios anéis de poder forjados por Celebrimbor e entregues três aos elfos. Ela é O artefato em disputa, porém não o único, seu poder advém da captura da luz solar e sua principal característica é criar torres idênticas para amplificação de seu potencial. O enredo se desenvolve em Dez-Burgos, uma região que contém dez burgos e três lagos, além de um vale ao norte e outras coisas mais que estão no mapa. O primeiro livro fecha com uma guerra de homens bárbaros contra os homens de Dez-Burgos e os anões. Os bárbaros perdem e no segundo livro, Bruenor, um anão, adota um menino bárbaro, ensinando-o o ofício de ferreiro. O mesmo anão confecciona uma martelo mágico, chamado Garra de Palas, que em verdade é o Mjolnir de Thor, porque ele vai, acerta a cabeça do adversário e retorna para as mãos de seu portador. Duas bonitas cenas são o ritual mágico no qual o anão desenvolve a arma, observada pelo elfo negro Drizzt, e a entrega da mesma ao não mais menino bárbaro. Akar Kessel, fazendo a linha aprendiz de mago manezão, e que encontra a estilha ainda no primeiro livro, decide tomar Dez-Burgos, com seu exército de monstros manipulados pelo poder do artefato. Para se somar à treta, outro manezão aprendiz de mago (um NPC lambão) liberta Errtu, o demônio que cobiça a estilha desde muito tempo, e parte sem demora para disputá-la. E como estamos falando de D&D, não poderia faltar justamente o dito cujo: um dragão branco cleptomaníaco (tô ligado na redundância, em D&D todos os dragões são cleptomaníacos). No terceiro livro, o bárbaro mergulha no mar de gelo, seguido do elfo negro, e ambos enfrentam Ingeloakastimizilian (pronuncia aí, rapá). Entre os tesouros de Ingel... Drizzt encontra uma espada de gelo, que obviamente combate seres de fogo. Porque é D&D, a bordoada estanca, e estanca para valer, e isso muito me lembrou Robert Howard e suas descrições de combate em massa. Salvatore foi muito feliz em tê-lo como referência. E o livro termina com a partida de quatro companheiros – há um hobbit entre eles – na busca pelas ruínas das cidades anãs, que é um ótimo gancho para um segundo volume. Mal espero para me debruçar sobre ele.
Na parte estilística e técnica, Salvatore coloca uma espécie de prólogo em cada livro, no qual o elfo negro Drizzt faz boas digressões filosóficas acerca de ética, influências culturais e de ordem social (não diria sociológicas). Fiz as seguintes observações as quais achei pertinentes:
As personagens Drizzt e Cássio são montadas em cima de Sun Tzu, de A arte da guerra. Isso porque são personagens bastante observadoras, que estudam minuciosamente os adversários, reservando a Cássio o combate em nível macro e a Drizzt o recurso de “cozinhar” o adversário e lançar mão de tocaias. Isso constitui um baita bizú para os mestres narradores. Outro bizú legal é o sistema de tranca de cofres do anão. Vale conferir.
Há um questionamento muito interessante por parte de Cattiebrie, uma jovem humana adotada pelo anão Bruenor, acerca da macheza sem limites do bárbaro Wulfgar. Ela basicamente pergunta se ter “piru” faz alguém ser melhor que outrem.
Na parte cômica, a construção de Sorrisão é esplêndida. Imagine um gigante de gelo com um nome desses.
E como nem tudo poderia ser flores há um deslize que não sei dizer se de Salvatore ou do tradutor, mas que é estranho balistas abrirem fogo, é. E muito. Na hora pensei em Silvio Santos falando “Mah oiê?”. Outra foi algo como “criaturas que jaziam mortas ou agonizantes”. Me pergunto como alguém pode repousar em agonia. o_O
Outra coisa que me deixou triste foi a sustentação da lógica burguesa dentro da fantasia medieval. Apesar de não ser tão aprofundada, como o é em Julliete Marrilier, por exemplo. É chato porque grande parte do público é composto por jovens que ainda estão em processo de sua formação intelectual e ideológica e se deparar com esse viés como o único possível é um tanto doloroso. O que me chamou a atenção foi a concepção de Cássio como o político que “rouba, mas faz”, o que é muito comum aqui no Brasil, onde nos deparamos com a corrupção em todas as instâncias de poder e setores da sociedade, inclusive na privada! Nem mesmo as grandes, pequenas, médias, minúsculas ou nano empresas estão isentas. Aliás, elas são as principais corruptoras! Porém não é este o assunto da crítica, contudo é impossível não falar, mesmo que brevemente, de algo que reflete muito bem (?) nossa realidade política, econômica e social.
Quanto aos volumes dois e três tenho algumas sugestões: no volume dois, os quatro aventureiros buscarão o Salão de Mitral dos povos anões embaixo da terra, no melhor estilo Jorney through the dark (Blind Guardian), ou a passagem por Moria em O Senhor dos Anéis, para no volume três, retornarem a Dez-Burgos e se depararem com alguma treta inventada pela própria Estilha de Cristal, porque no volume um ela desiste de Akar Kessel e não é mais mencionada. Lá no prólogo, Al Dimeneira, o ser angélico que bane o demônio Errtu do mundo material, abandona a estilha na neve. Aparentemente Drizzt cometera o mesmo erro, a menos que isso seja fundamental para a existência de um volume três. Aí Bob Salvatore está perdoadíssimo.

 

 ✩
(Se você chegou aqui, é um guerreiro, subiu no meu conceito!)
Ah, e por que eu falei exaustivamente sobre D&D lá no começo do texto? Porque achei simplesmente genial a concepção de arte dos caras. As mídias não são limitações para eles. Os caras encaram o desafio de promover a marca em outros mercados, mas com qualidade, o que rende bons frutos para o público. E não é mera metalinguagem, há um bom diálogo das outras mídias “filiais” com a matriz, que é o jogo de RPG. O que isso provoca na literatura? A tarefa de o autor ter de descrever o ambiente de jogo, algumas regras de funcionamento do sistema, discorrer acerca das características do jogo em si, como citei lá em cima, as culturas das sociedades, detalhes geográficos para o aprofundamento de ambientações, como os planos funcionam, as características das raças, como se inserem no contexto social. Isso acaba funcionando como um baita suplemento para o sistema de jogo, como os suplementos que a White Wolf fez para os livros de Changeling, embora a D&D os tenha feito muito antes e em forma de romances. E na literatura isso simplesmente modifica a forma de a obra ser entendida em sua totalidade. Não é mera literatura de consumo adolescente ou obra ficcional de fantasia baseada no folclore europeu. Elas constituem um capítulo a parte na crítica de literatura infanto-juvenil, justamente porque elas precisam fornecer material para os jogadores. Elas cumprem uma dupla função.
Como tenho acompanhado pouco D&D de uns anos para cá, não sei o que têm lançado, mas falando de outra mídia, vi em livrarias livros de World of Warcraft. Nunca joguei, conheço pouco, mas são games on line na linha RPG. O trabalho gráfico é lindo de morrer. Folheei algumas páginas, li umas linhas e achei que vem a ser um bom substituto do velho D&D e com a mesma proposta. Espero que sim e se valer a pena, mais lá na frente pode pintar aqui uma crítica. Agora estou lendo Juliette Society, da Sasha Grey, e se também valer o esforço vem crítica. De antemão, ela tem talento com as letras, vamos ver como se sai nos ¾ de livro que restam.

Em 15/12/2016

Rodrigo Martins


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito

Hoje deixo vocês com um microconto de um grande amigo, Maurício Panaro.  Ao lê-lo por primeira vez (o conto), pensei: “caramba, isso é a cara do Maurício. Que habilidade para “ficcionar” as próprias palavras!” Atendendo às características que o formato exige, estão lá impecavelmente a rapidez dos eventos, dos diálogos, a pouca profundidade nas personagens, sem porém deixar de preenchê-los de densidade. É isso, há uma densidade preenchida por poucas palavras, que expandem a ideia do meramente planificado na tela. Em suma, é um trabalho, não para se ler com pressa, mas com a sofisticação da degustação.

Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito

"Sabe, então é um infinito que está aí dentro." Disse Damião, sua voz educada soando cavernosa e arrastada, como duas lápides se esfregando.
"Achei que você tinha dito que há um espírito aqui." Corrigi.
"Tá mais pra uma... consciência dimensional - transcendente que se tornou levemente antropomórfica por lidar com nosso mundo disfarçada de humano." Ele explicou. "Ela já foi um lugar, uma cor e uma equação matemática. Aí veio pra cá e tentou ser humana nesse mundo. Agora ela é tipo um espírito mesmo. Mas um espírito infinito." Ele coçou o queixo calmamente. Damião era assim, sabido, mas honesto, por isso eu gostava de trabalhar com ele e o pessoal do apê. Dá pra confiar neles.
Segundo eles já fazia uma semana que eles tinham dado abrigo a uma entidade que precisava de ajuda. Logo depois essa entidade teve que ser engarrafada por Tia Fell, pois era capaz de consumir o universo se ocupasse o mesmo lugar que ele.
Girei a garrafa e inspecionei seu conteúdo. Eles estavam certos. 
"Exatamente o que vocês esperam que eu faça?" Perguntei, tentando manter a compostura de alguém que está segurando infinitas bombas nucleares na mão, todas presas por uma rolha dentro de um pedaço de vidro. 
"Então, a Fell trancou o bicho aí, mas o anjo nem chega perto disso. Andréia ficou tão abalada que foi dar um tempo fora, tá viajando não sei aonde e o Leandro... não dá pra confiar a ele esse tipo de coisa, você sabe." 
"Espera, vocês acham que eu posso cuidar disso? Ficar com isso?"
"Você pode?" Ele simplesmente perguntou.
Agem comigo com honestidade. Fiz o mesmo então.
"Acho que não; quer dizer, é uma infinitude, de qualquer maneira. Se escapar, vai no mínimo subverter centenas de mentes e se tornar uma Egrégora. No máximo vai virar a realidade toda do avesso e criar uma nova!" Tentei fazer ele entender que eu não tinha lugar pra guardar isso; o armário do quarto? Onde eu ia colocar algo com o potencial de destruir um universo?
"Eu entendo." Damião disse, do seu jeito particularmente calmo. "Mas a gente pensou também: 'Maurício conhece pessoas', então talvez você conheça alguém que possa ficar com isso, alguém de confiança... "
Enquanto ele explicava isso as engrenagens na minha cabeça já iam girando nas piores direções possíveis. Nossa, se isso cair em mãos erradas podem muito bem leiloar isso nos Planos, ou sugar essa energia de um universo inteiro, ou simplesmente quebrar a maldita garrafa...
"Você me ouviu?" Perguntou Damião, me despertando do devaneio terrível.
"Sim, ouvi. Não, eu não acho que eu conheça alguém, mas tenho outra solução. Posso levar essa garrafa e abrir além da Beira do Infinito. Do outro lado ela não vai ser problema, só vai se tornar um outro universo." Eu tentei manter a calma enquanto dizia aquilo. Queria que soasse provável, além de possível.
Silêncio por alguns segundos. Depois Damião respondeu:
"Vai ser uma puta caminhada!" 
"Eu gosto de caminhar." Respondi. 
Ajeitei a garrafa com cuidado na mochila, me despedi de Damião e comecei a andar em direção ao pôr do sol.

Extrato de diário (Referência; 124 - 201{?}; "Do vinho vem a sabedoria - Um Infinito para cada garrafa e uma garrafa para cada Infinito")

Maurício Panaro

sábado, 18 de junho de 2016

Fonsequiando

Conto inspirado na obra de Rubem Fonseca, com o Rio de Janeiro como cenário, como não podia deixar de ser.

Fonsequiando

A Elesbão Ribeiro

Depois de girar pelos buracos da cidade, encontrei meu destino num motel fedorento da Av. Brasil, desses que o letreiro pende de um lado de velho. Além de fedorento o lugar era mal conservado, um muquifo. Onde os ratos só entram para espantar o tédio.
Tinha à minha disposição uma morena. Não era bonita, mas tinha grande a bunda. As roupas eram vulgares, mas convenhamos, onde a peguei se assim não estivesse seria confundida com suas vizinhas moradoras do mesmo bairro, vila, favela ou sei lá o que aquilo chamasse.
Mas não, eu conhecia aquela merda toda. E conhecia com a palma da minha mão. Sempre estaria em mim. Indubitavelmente impresso, expresso, selado e carimbado.
Putaquepariu, disse eu baixinho, tô ficando velho, é capaz de continuar pensando nisso mesmo depois de morrer.
Como, senhor...?, perguntou Rosineide. Eu levantei os olhos. Do chão para as coxas dela. Rosineide tinha junteira, mas que disfarçava com um rebolado de adolescente mostrando o rabo. Na hora lembrei-me do Camilo, da firma que trabalhamos na zona oeste: mulher gostosa, é a que tem junteira, rebola mesmo sem vontade.
Dance, disse a ela, e sentei numa cadeira salmão, desconfiando que um dia tivesse sido rosa. Não faço além do combinado, se o amigo não sobe aí o problema é contigo, falou.
Olhei seriamente para ela, eu só quero que dance. Você dança e fica tudo bem. Não, ela gesticulava como se não falássemos no mesmo idioma, não vou fazer além do combinado. Ou então você paga mais.
Quem ela pensava que era? Havia tantas como ela. Se eu emparelhasse algumas ali elas negociariam entre si o menor valor pra mim. Fiquei olhando aquelas coxas levemente curvadas pra dentro, até a altura dos joelhos, depois seguiam as canelas retas, mas em direções opostas. Até que tinham lá sua graça. Sorri.
Você deve achar que sou um velho babão, disse ainda com o sorriso na boca. Olha, acho não, nem velho o você é, respondeu ela, mas que tal começarmos logo? Cê qué que eu bata uma?
Ela tinha certeza de que eu era uma merda de velho babão. Onde fui parar? Até uma puta sentia pena de mim. Parece que debaixo do poço havia um sótão. E sim, as putas sentiam profunda compaixão por mim. Como podia ser diferente?
Rosineide, querida, eu não quero punheta, falei calmamente. Quero que você dance. E só dance. Entendi o que você quer, mas pra ter showzinho tem que abrir a mão, e ela me estendeu a palma da mão com o indicador da outra no centro.
Estava ficando puto com aquilo, será que ela queria também me sacanear? Que porra que ela tava falando? A mulher tinha junteira e problemas cognitivos.
Levei a mão ao rosto numa expressão de angústia. Olha, a gente não vai meter, mesmo que “o amigo” suba. Como?, ela me perguntou. E tinha realmente dúvida em seu rosto. Levantei e falei, eu não meto, você dança, eu te pago e você vai embora, sorri com olhos vidrados como se estivesse fazendo uma descoberta maravilhosa.
Rosineide titubeou, levou a mão à cabeça e disse, tá legal, se você quer assim. Então ela pegou seu smartphone e colocou uma porra de funk estridente e teria começado se eu não interviesse. Ah, você quer se dar de bacana, tenho uma ótima pra gente fina, e colocou Joe Cocker, aquela mesma do comercial. Será que ninguém cansava daquela porra?
Tira isso daí, falei com impaciência já pegando o meu smartphone. Pronto, agora sim. Era Miles Davis. Tinha uma música do Savatage na cabeça, que falava sobre espinhos e sonhos, mas queria mesmo era ouvir Miles Davis. Era com sua música que queria ver aquilo. E não descobrir que podia haver mais coisa embaixo do sótão.
Rosineide começou a dançar. Ela era gostosa e conseguia ficar mais gostosa ainda dançando. Jogava os quadris de um lado para o outro, como as pancadas de um gongo que soam e soam. E atordoam o alvo a cada colisão. Se eu metesse nela jamais teria aquela visão, do corpo moreno, à meia luz, serpeando a hipnose, mareando o movimento, puxando os olhos da cara, grudando na pele, de fogo e beleza e desejo.
Rosineide ria e mandava beijinhos. E me mostrava a bunda. Passava o pé pelas canelas, subindo. Voltava a dançar com aquele movimento ondulante de amazona e rainha-puta. Sim, puta, rainha e amazona a um só tempo. O que rondava minha mente era que ela não era isso tudo por si mesma. No fundo era uma mulher comum. Como qualquer outra. O que a fazia puta?
Eu sabia. Sempre soube. Desde sempre. Era o mesmo que fazia minha mãe ter sido puta, ter posto minha irmã pra ser puta e consequentemente o que levaria minha filha a ser a puta dos coleguinhas, pelo que a mãe dela já dizia.
Elas eram mulheres comuns. De avental sujo de gordura e lambendo colher de pau. E eram putas dependendo do babaca que tivessem por perto. Ou lhes pagando pra dançar. Ou meter. Ou implorar por uma punheta.
Abri o bolso da camisa e tirei um envelope preenchido com o pó mágico que cai das asas da Sininho. Havia meses ali. Abri uma cerveja morna e derramei tudo, sem deixar um naco sequer rolar pra fora da boca da lata. Bebi a metade de um gole só. O gosto era horrível, mas nunca beberia aquilo novamente. Decidira isso naquela hora. Sem chance de voltar atrás.
Logo o efeito me nocauteou no descanso da cadeira e turvou meu olhar como se transformado num chinês em questão de segundos. Ainda via o corpo de Rosineide serpeando à minha frente, como deus e o diabo em luta, em festa ou cópula. Aquilo era uma profusão multicor de tons escuros. As ancas jogando de um lado para o outro como uma embarcação flutuante, que não sabe se doma ou se engolido pela maré tempestiva.
Rosineide começou a falar, mas que ela dizia? Sua voz era um amontoado de palavras desconexas, como aquela porra de linguagem de Lovecraft. Mas sobretudo sorria. Na minha mente confusa ela queria transar. Transar não, foder. Ela queria foder. E ela queria foder era muito. Não que eu fosse babaca de achar que elas sentiam tesão nos caras que as pagam, mas seu olhar me dizia isso. Tentei dizer a ela que continuasse a dançar, mas as palavras simplesmente não saiam porque minha boca já estava dormente.
Levantei os braços pra acenar e ela tomou a lata das minhas mãos de um impulso. Cara, como eu queria estar sóbrio pra dizer que não bebesse daquela merda, da mesma forma como queria ter arrebatado os copos de que beberam minha mãe e minha irmã, e dos que beberia minha filha, segundo a mãe dela putinha igual a avó e a tia.
Mas não adiantou. Ela tomou tudo.
Tão logo caiu na cama, fechei meus olhos esperando que o espinho perfurante me lançasse no sonho derradeiro, ali, banhados pelo neon vermelho como caricaturas shakespearianas.


Rodrigo Martins

Em 14/06/16

sábado, 30 de janeiro de 2016

O monstro do capinzal

Um micro conto homenageando um grande amigo peludo, brabo e de dentes afiados. Apesar de todas as disputas territoriais e embustes nos damos bem e sempre temos bons momentos. Essa é para você, fera!

O monstro do capinzal

E lá estava eu, no capinzal, diante do gato, com sua rama de capim-limão à boca, uma fera sombria, horripilante e ignota. A noite caía lúgubre e o silêncio que se fazia era sepulcral. Ele me lançava olhares sinistros, de ódio, e eu revidava, pois minha sobrevivência dependia disso. Éramos apenas nós dois, e sabíamos que só um sairia vivo deste embate mortal, cruel e apoteótico. Clemência não seria pedida, pois não seria dada. A maldade do gato era conhecida pela boa gente e misericórdia não era da sua natureza macabra.
As orelhas cor de âmbar foram postas para trás e um turbilhão se apossou de nossos corpos e mentes. Rolávamos como selvagens desalmados, não mais que bestas deformadas pela escuridão: não podia afirmar se eu mataria o gato ou se ele me levaria para as trevas absolutas.

Rodrigo Martins

Em 29/01/16