sábado, 10 de janeiro de 2009

A tartaruga e a ratazana


Esse conto surgiu de maneira interessante. Queria opor dois lados. Beleza e feiúra, pureza e hediondez, recompensa e punição divinas. Mas ainda assim mostrar que opostos podem se unir em torno de um propósito e que há redenção para qualquer alma, que qualquer que seja o ser ele tem o direito de mudar. E não são as pessoas que oferecem estas chances. É o mundo.
Na inspiração, quis buscar algo parecido com que Oscar Wilde fez em "O amigo dedicado", na qual animais contam uma estória sobre seres humanos e atribuiem juízo de valor às ações dos personagens. Procurei buscar ingenuidade na maneira de contar esta estória.


Então lhes apresento "A tartaruga e a ratazana" e lhes peço que atribuam juízo de valor às coisas (principalmente a este conto).




A tartaruga e a ratazana

O mar estava calmo. Uma gostosa brisa suave soprava em direção ao sul. O sol de um dia claro iluminava e resplandecia em cada crista de pequena onda. O imenso mar azul acolhia o reflexo do sol, que por sua vez estendia como um tapete uma trilha dourada. Uma linda tartaruga nadava nesta mostra de paraíso. Com tal graciosidade que suas nadadeiras moviam-se para frente. Afundavam na água.
Empurravam-na para trás. Repetiam o movimento. Uma tênue espuma havia entre suas nadadeiras e as águas daquele mar.
O sol coroava sua cabeça ao erguê-la. Apertava os olhos pequenos em reflexo. Raios de sol penetravam nas fendas de seu rosto. Abria a grande boca para respirar com mais determinação aquele ar puro. Cristais de sal buscavam refúgio nos cantos de sua boca. Aproveitavam esta regozijante viagem. Finos fios de água corriam-lhe pelo casco de volta ao mar.
Assim ela deslizava por aquela infinita beleza da qual fazia parte. E tudo era como a genialidade de uma grande obra de arte. Uma tela com duas cores primárias e um indefinido sem-número de cores resultantes dessa incrível fusão. Onde a única personagem era também cenário.
O vento a levava.
O mar a embalava.
O sol a chamava.
Como um zeloso marinheiro esta sereia de silencioso canto murmurava suas preces melodiosas. Elas eram cada onda. Cada bolha de espuma. Cada raio de sol e sopro de vento. Cada micro estrela piscava na crista da onda em resposta e coro. Era uma bela prece.
Chega à praia.

No profundo esgoto da cidade, uma enorme ratazana deixava seu ninho. Ficava para trás suas coisas inúteis. Sacos plásticos, fios de barbante, de cabelos humanos, moedas. Lixo!
Atirava-se fortemente nas piscinas de esgoto. O grosso pêlo absorvia aquela água podre. Ela batia em seus olhos vermelhos. Eles ardiam. A ratazana então apertava os olhos com força. Nadava às cegas. Conhecia bem aquele ambiente. Vivera ali por muito tempo. Cada pequena viela, cada pequeno beco. Buracos eram como passagens secretas que talvez outros animais nem conhecessem.
O volume de água aumentava a cada instante. Enchia os pulmões de ar. Conseguia ficar na superfície daquela imundície. Restos de coisas inúteis da cidade desciam junto com a correnteza. Estrondos vinham de cima de sua grande e deformada cabeça. Eriçava-lhe o pêlo. O longo e pelado rabo com marcas de mordida nas pontas lhe servia de leme.
Para evitar o choque com grandes objetos, mergulhava. Com as patas dianteiras em forma de pás, afastava a água. Jogava-a para trás de si. Emergia. Escancarava a bocarra, dentes à mostra, para assaltar o ar pestilento. Enchia novamente os pulmões de ar. Mantinha-se na superfície. Sacudia os bigodes desalinhados. Gotejavam.
Entrou por um buraco. Espremeu-se. Cravou as garras no concreto. Subiu num local firme. Recuperou o fôlego. Olhou ao redor. Tentava situar-se. Escalou as paredes. Avistou as grades do bueiro. Ganhou a rua.
A chuva caía forte na cidade. A luz néon iluminava fantasmagoricamente cada construção. Roncos de motores, choque de águas, vozes distorcidas, trovoadas violentas, passos molhados incertos compunham uma inquietante sinfonia.
A ratazana correra para longe do barulho. Uma estreita rua a convidara ao acesso. Um grito de mulher ecoara na noite. Uma torta de chocolate recém caída encharca-se na chuva. Uma perna macia é tomada por um pequeno corpo hediondo.
Há um vôo de rejeição que se projeta pela noite. Um corpo robusto é atirado à água. Ele é levado pela correnteza, que impulsionada pela ventania, margeia o meio-fio. Golfadas de água vem e vão sob sua cabeça, cobrindo-a. Seu corpo submerso é carregado. As patas tentam criar um escudo propício à respiração.
Uma onda mais forte. Um vento impiedoso. Um grande esforço.
A inconsciência vem.

7 comentários:

  1. Show de bola Muleke, td de bom kra. Passando pra deixar minha marca!!!!!! Muito interessanto o conto. by hendrix_rm (Ricardo)

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  2. Adorei o jeito que você narrou cada animal, a tartaruaga ficou uma parada bem pura quase como uma pintura memso e a ratazana ficou algo bem ratazana. ficou algo bem poetico numa parte e no outro vulgar.Bem pensado mesmo

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  3. Gostei. O início da parte da ratazana realmente causa repulsa!

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  4. Parabéns. Belo texto.
    Marcello

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  5. Meu caro! A narração foi vista com muito detalhe, fazendo o leitor viajar no mundo destes animais, um bom conto, ver como esses seres vivem é pensar e imaginar muito! Mande mais! Abraços!

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