De estrelas jovens e estrelas velhas
Houve uma vez em que Morpheus foi convocado a batizar as estrelas e constelações. Mas as estrelas não eram essas que vemos no céu à noite. Eram outras estrelas. Estrelas de outrora. Jovens estrelas, cheias de fulgor, aspirações, que resplandeciam o brilho daquela época. Essas de agora são menores em suas infinitudes. Não eram nascidas ainda.
E Morpheus foi então àquela cerimônia presidida por Fatum. Havia belas estrelas e constelações magníficas. Todo um Universo novo por nascer. Feliz ele admirava tudo com o secreto orgulho que sua posição lhe incutia. Com ele havia levado um dos primeiros seres viventes: criação de deuses tão antigos que nem os deuses da humanidade supuseram conhecer.
Era uma mulher. E estava maravilhada com tudo aquilo. Era uma infantil alegria radiante. Vultos de luzes eram tudo o que se podia fixar em sua mente jovem: ela era a companheira de Lorde Morpheus.
Logo que chegaram, todos os olhos se voltaram curiosos e respeitosos para eles. Fagulhas distantes diante de tanta majestade. Muitas figuras, que ela desconhecia, saudaram Morpheus. Felicitaram-nos. Brindaram àquela cerimônia tão importante.
Morpheus foi a Io, a estrela verde. Ele os cumprimentou. Morpheus a apresentou como o primeiro ser vivente. “O primeiro de muitos que ainda virão.” Io beijou sua mão como era costume naquela época. Ajoelhou-se diante de Morpheus, como sua autoridade impunha.
Então Mistral surgiu. A impaciência nos seus olhos sugeria aflição. Morpheus foi com Mistral: deixou a mulher com Io.
Durante longo tempo Mistral e Morpheus discutiram acerca da tomada da cerimônia e do futuro do Universo. Sobre muitos eventos ela pedia presságios e conselhos a este ser. E ele foi muito gentil para com esta estrela, prometendo bons augúrios, clareza no discernimento de suas mensagens.
A cerimônia deveria ter início. Morpheus procurou a mulher. Viu as fagulhas de Io ao longe; foi até ele. Atravessando todo o salão, Morpheus percebeu uma certa diferença em sua companheira: em seus olhos resplandecia as chamas do fogo verde de Io. Não havia mais nada que pudesse fazer para tê-la de volta: eles estavam enamorados. Ele então olhou com desdém para o dois do alto de sua imponência. A mulher havia escolhido Io, porque para ela eram dois gigantes. Embora Morpheus não fosse eterno, sua vida era infinitamente superior a Io. Estrelas nascem, dão vida e morrem. Sonhos são esperanças. Mas para aquela alma feminina não havia diferença alguma em poder, apenas o amor - ou paixão - por Io.
A cerimônia teve início. Morpheus batizou centenas de estrelas, porque naquela época ainda não eram milhares. A cada uma delas e constelações concedeu dons, dádivas, que lhes seriam muito úteis e a seus protegidos.
Ao chegar a vez de Io, Morpheus deu a ele e a seu sistema a dádiva de seu ódio: concedeu a ele a ausência de sonhos. Todos aqueles nascidos alimentados pelos raios de Io não sonhariam. A eles lhes seria negado estes sentimentos. Nenhum entre os presentes entendeu àquela estranha dádiva, exceto seus personagens diretos.
E assim viveu Io. Sem sonhos. Levando a mulher consigo. O primeiro ser vivente no Universo. Ele a levou para seu sistema. Ela foi banhada pela beleza da luz de Io, seus raios de esplendor. Durante muito tempo eles foram felizes, de planeta em planeta, com a estrela invadindo seu corpo em êxtase sublime.
Embora os primeiros seres viventes tivessem uma longa existência se comparada aos seres de hoje, ela enfim feneceu. Seu corpo, sua alma: a companheira de Io, que fora primeiramente de Morpheus.
Io e seu sistema continuaram existindo. A tristeza era notável. A apatia de viver sem sonhos. Porque sem sonhos não há esperança. E sem esperança é impossível a vida. E foi assim que eles viveram, assim como todos os habitantes do sistema de Io.
Hoje Io não existe mais. Porém a resignação e orgulho ferido de Morpheus ainda podem ser sentidos neste sistema.
Adaptado de uma estória de Neil Gaiman,
Terça-feira, 03 de agosto de 2010.
Porém contada oralmente em 31 de julho de 2010, sábado.
Lorde Morpheus, grande conto, mítico e ao mesmo tempo reflexivo, muito bom!
ResponderExcluirCom certeza e ainda assim é uma literatura que abrange leitores humanos, divinos, perpétuos e estelares (risos).
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