sábado, 16 de outubro de 2010

Há ninguém? 3


E segue mais uma parte do conto "Há ninguém?", a terceira, e não é uma trilogia. Aqui ocorre uma súbita mudança na narrativa feita pelo personagem central, porque ele não mais se encontra sozinho. Isso toca profundamente no comportamento humano, na noção espacial dos limites do EU. Com a presença de outra pessoa isso tende a mudar.
Algo que esqueci de mencionar nas partes anteriores foi a desconstrução da narração do personagem por suas ações. É uma grande influência do Mestre Machado, porém me soa, até hoje, original. Muito obrigado aos que passam por estas páginas.


Há ninguém? 3

Ela estava assustada à dias. Todas as pessoas que ela conhecia, e não conhecia, haviam sumido. Consolei-a. Disse que era assim mesmo. As pessoas somem de uma hora para outra. Teve um cara que largou a família para viver com uma mulher endinheirada. Nunca mais viu as filhas. Ela chorou nos meus braços.
Afaguei os cabelos dela. Perguntei que idade tinha. Marcela havia tido sua festa de 15 anos há pouco tempo. Sinceramente esperei não me tornar um defunto autor muito em breve. Cantei Morenita de 15 años. Ela não entendeu. Então lhe ofereci uma carona. Perguntando-me para onde, tornei isto um passeio. Fomos até Silver Devil.
Parei no shopping center, deixei ela no carro, fui às carreiras à loja de conveniências. Sabia que estava lá. Catei vários e vários CDs. Encontrei. Voltei correndo para o carro. Pus Luis Miguel no som e fomos em alta velocidade até o mar.
Sempre que estávamos em linha reta, olhava o rosto dela e apreciava o quanto estava se divertindo com minhas manobras. Parecia prestar atenção aos lugares que passávamos. Olhava para trás. Sorria. Descendo ladeiras, dizia-me experienciar um frio na barriga. Falei que era o coração da máquina, a maneira como Silver Devil se comunicava conosco.
Levei-a até algumas pedras que são constantemente banhadas pelo mar. Era bom ver o rosto dela tão contente. Nunca havia estado naquela praia. Não conhecia paisagem tão bela. Adorou ver o choque das ondas nas pedras. Disse-me que era como música na poesia. Perguntei-lhe se não seria o inverso. Ela afirmou que não. Havia visto na TV uma vez.
Descemos e almoçamos. Marcela estava faminta. Alimentara-se apenas de biscoitos, pão, leite em pó. Não sabia cozinhar. Tinha medo de ir para fora de casa. Disse a ela que o mundo era nossa casa agora. Não devíamos prestar contas a ninguém, poderíamos fazer o que quiséssemos. Viver de festas, compras, viagens, passeios. Prometi a ela uma viagem de iate. Aprenderia tudo sobre em livros e a levaria.
Deixei que ela escolhesse o restaurante. Sua opção fora frutos do mar. Pelo tempo sem ninguém naquele lugar as coisas começavam a estragar. Porém conseguimos selecionar boas peças. E como Marcela gostou muito daquele restaurante, coloquei os melhores frutos no frigorífico, com o máximo de gelo que pude encontrar.
Almoçamos salmão grelhado, risoto, salada de maionese, lagosta e lula. Tentamos beber o vinho branco mais caro da carta da casa, mas era horrível. Derramei na areia e bebemos um Casillero del Diabo mesmo, branco. Ela achou os dois uma bela porcaria. Ri disso, embora tenha sido maldade da minha parte. Enquanto colocava um Paco de Lucia para ouvirmos, ela jogou fora sua parte e abriu um refrigerante.
Voltamos para as pedras e ela me perguntou se isso tudo não seria coisa do diabo. Perguntei por que e ela me apontou a garrafa que eu carregara. Disse a ela que agora não havia mais diabos, deus, deuses, anjos, nem nada mais. Apenas nós, os animais e muita curtição pela frente. E se, ainda assim, um deus insistisse em existir, era ele quem havia retirado todas essas pessoas do nosso mundo para nossa honra e glória. Amém. Ela riu. E como era bonito esse sorriso.
Quando o vento começou a soprar mais forte, descemos as pedras. Precisávamos arrumar logo um lugar para dormir. É muito perigoso dormir dentro de um carro no Rio de Janeiro. Ela adorava minhas tiradas mas me confessou que tinha mesmo medo de dormir naquela região. Preferia dormir onde conhecia bem. Acreditei que tivesse desenvolvido uma fobia por conta dessa situação que apenas para mim não era bizarra. Ela quis saber onde eu dormia. Contei tudo até aquele exato momento. Ela, pelo contrário, não tinha muito que contar, exceto antes de as pessoas darem no pé.
Lembro de ter dito que me mudaria para a igreja. Ela achou uma blasfêmia a princípio, mas concordou que era uma boa idéia depois. No dia seguinte escolheríamos meus móveis e tudo estaria resolvido. Eu teria uma casa, como todo mundo. Levei-a de volta para o apartamento onde morava. Disse para ela fechar bem a porta, apesar de não precisar. E também de não fazer barulho algum na noite escura. E se ouvisse qualquer coisa estranha, que ficasse bem quieta. Assim enganaria qualquer um que se achasse sozinho no mundo. Como acabei amedrontando-a, pediu-me que ficasse. Fiquei, bebi demais e dormi no sofá abraçado... a um porto que peguei no restaurante.
Leia também as 1ª e 2ª partes deste conto:

4 comentários:

  1. O conto esta ficando interessante. Me fiz a pergunta que o personagem deve ter feito em algum momento,ou vá fazer mais para frente(espero não ter estragado o que vai acontecer a seguir com esse comentário)se não ha mais ninguem além dos dois no mundo? Pois deve haver.
    Esse conto, em determinado momento,me fez lembrar de Louis e Claudia de entrevista com vampiro(embora o personagem principal se pareça mais com o Lestat e Marcela não se pareça com Claudia em sua personalidade- ou não ainda), pois os dois acham que são os únicos vampiros no mundo.

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  2. Ele procurou sim por outras pessoas, esperando não encontrá-las, claro. Mas a todo momento é uma preocupação na mente dele. Será um encontro hostil, ou não? Não há leis, não regras. Acredito que a 4ª parte será mais elucidativa quanto a isso.
    Quanto a "entrevista com vampiro", sim, eles acreditam estarem sós, o que preocupa Marcela e é um alívio para ele. Mas, ao compor Marcela, busquei somente uma maneira com que o narrador-personagem pudesse fazer alguns trocadilhos e, assim, este autor homenagear grandes mestres.

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  3. Bela continuação, se você não fizesse a afirmativa a respeito de Marcela nunca concluiria que se trataria de uma homenagem a grandes mestres da literatura, para você ver minha ignorância a respeito dessa arte maravilhosa que é a literatura. Interessante essa diferença dos personagens a respeito de ficarem sozinhos em um lugar, ambos tem um impacto um pouco discordante a respeito da situação em que se encontram. Parabéns!

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  4. É a Marcela de Machado de Assis. Tem várias situações que o narrador coloca esse possível caráter dual da minha Marcela com a de Machado. Quem viver, verá.

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